É difícil acreditar, mas a Psicanálise já foi considerada perigosa,
e em primeiro lugar por aqueles que a praticavam nos seus inícios.
Ao avistar a Estátua da Liberdade
do navio que os levava aos Estados Unidos, Freud teria sussurrado ao ouvido
de Jung: “eles não sabem que nós lhe trazemos a peste.”
Esta história foi contada por
Jacques Lacan, que a teria ouvido do próprio Jung.
Mesmo que a tomemos cum grano salis, já que não existe
qualquer outra menção a ela, a frase faz sentido no contexto da época: a
correspondência entre o fundador e seus discípulos, naqueles anos heróicos,
formiga de referências a “inocular” as
idéias freudianas na Psiquiatria e no público em geral, como se fossem um
vírus capaz de abalar as colunas da sociedade.
São metáforas, por certo, mas que deixam entrever o
potencial subversivo daquelas doutrinas.
A direita conservadora também considerou a Psicanálise perigosa,
chegando os nazistas a bani-la sob o argumento de que era mais uma das
artimanhas judaicas para envenenar a civilização ariana.
A Igreja condenou-a por sua
análise da religião; os comunistas, por trazer a marca do individualismo
burguês – razão pela qual foi proscrita da União Soviética e dos seus
satélites.
O que chocava tanto nas idéias de Freud?
Na época, a tese da sexualidade
infantil, e de modo geral a importância concedida aos fatores sexuais na
determinação de comportamentos aparentemente muito distantes de Eros.
Hoje em dia, terminado o século XX – que já foi chamado de “o século
de Freud”, pela influência que suas idéias tiveram na visão do homem
ocidental acerca de si mesmo, na literatura, no cinema, nas artes, nos
costumes, na educação, na Psicologia – hoje em dia já não parece chocar
ninguém a existência do inconsciente ou do complexo de Édipo, assim como o
peso das fantasias eróticas na vida cotidiana de todos nós.
De “perigosa”, assim, a Psicanálise dificilmente seria acusada hoje.
É mais comum vê-la tachada de “irrelevante”, “ultrapassada” ou
“elitista”: as críticas provêm com freqüência da Psiquiatria e da
Psicologia dita cognitiva, e se referem à suposta ineficácia do tratamento
analítico para aliviar o sofrimento psíquico, se confrontado à terapia com
drogas ou a métodos mais diretivos.
Esta afirmação,
trombeteada com monótona freqüência, é quase sempre acompanhada por uma
outra: “Freud está morto”.
Mas por que anunciar isso tantas vezes, e com tamanha veemência?
É inevitável a suspeita de que
tais declarações sirvam de fachada a algo exatamente oposto – à percepção,
vaga e obscura, da Psicanálise como inquietante.
E o que haveria de inquietante na
Psicanálise?
Não pode ser sua suposta ineficácia, seu caráter “pouco científico”
ou a “arbitrariedade” do seu método de interpretação: nada disso (que não
passa de caricatura) suscitaria medo - quando muito, provocaria desprezo. O
que inquieta na disciplina freudiana é sua exigência ética:
o sujeito deve responsabilizar-se por
sua vida, não no sentido de ser acusado pelos sintomas que apresenta – o
extremo deste absurdo é a idéia de que alguém “estressado” pode provocar em
si mesmo a eclosão de um câncer – mas
no sentido de assumir a parte que lhe cabe nos problemas e fracassos da sua
existência, como primeiro passo para os superar - na medida em que isso for
possível.
Vivemos numa sociedade em que a autonomia, valor máximo do
Iluminismo que plasmou a modernidade, é entendida como liberdade para
consumir e para perseguir o prazer a qualquer custo.
Pouco importa o sentido das nossas experiências: é
a sua intensidade que, nos é dito incessantemente,
deveríamos buscar, transformando cada ato e cada instante numa fonte de
excitação, fazendo de nossas vidas um constante borbulhar de sensações sem
continuidade.
Viveríamos, nos dizem, numa cultura pós-moderna, na qual impera a
fragmentação e a condição humana se reduziu a migalhas promovidas à
categoria de espetáculo; só nos restaria acomodar-nos a isso, e renunciar
àquilo que a modernidade promoveu como ideal da humanitas: a consciência
de si e a responsabilidade pelo que somos e fazemos.
A Psicanálise está longe de endeusar a consciência per se:
ela nos diz que somos movidos a paixões, que o ego não é senhor em sua
própria casa, que muito do que somos nos escapa, talvez o essencial. É por
isto que somos levados a atribuir a outrem a culpa por nossas infelicidades
– aos pais, ao cônjuge, ao consenso de Washington.
A experiência psicanalítica vai por outro caminho, que pode parecer
paradoxal: ela convida, por meio do dispositivo mais simples que se possa
imaginar – falar sobre si mesmo para outra pessoa – a um mergulho nos
desvãos de nossa alma, para tentar conhecer algo daquilo que nos
determina à nossa revelia. O extraordinário é que esta experiência pode
levar a uma profunda transformação da pessoa, não porque exclui,
mas, ao contrário, porque inclui no raio da sua
consciência alguns destes fatores.
Não é Freud quem “explica”, nem
de resto o psicanalista: é o próprio paciente quem se descobre, ouvindo-se
falar, deixando-se levar pelo seu discurso, elaborando seus insights e o que o analista pode lhe comunicar por meio
das interpretações.
Não é raro, nas
entrevistas preliminares, que o candidato a analisando expresse o temor de
ficar “dependente” da análise,
como se pode ficar dependente do álcool ou da cocaína.
Mas na verdade o que assusta é
outra coisa: a meu ver, a perspectiva de ter que abandonar os padrões de
dependência inculcados na infância, as servidões que resultam do recalque, das defesas mutilantes e do
medo de sentir angústia.
A liberdade que nasce do
auto-conhecimento – aparentemente desejada por
quem procura uma análise, a crer no que é dito na superfície do discurso –
é que ameaça: pois implica em dizer a verdade a si mesmo, em ver dissipadas
muitas e queridas ilusões, que levamos tanto tempo construindo, e das quais
somos – aí sim, cabe o termo – dependentes.
A viagem psicanalítica ao fundo de si mesmo não é fácil, nem
indolor.
Ela está na contramão do
narcisismo infantil, promovido sem pudor pela sociedade atual como solução
para as dificuldades do viver.
O espelho que ela estende ao paciente, como o da madrasta de Branca
de Neve, lhe dirá que não é “a mais bela”, e esta descoberta provocará
desconforto, às vezes terror, certamente angústia.
A Psicanálise pode ser tudo,
menos complacente com nosso profundo desejo de iludirmos a nós mesmos
– e a chamada “resistência” é precisamente a
prova de quão arraigada é esta tendência.
Ela propõe a conquista da autonomia possível - e nisto é herdeira do
Iluminismo; autonomia, contudo, fundada na admissão daquilo para cada qual
é mais íntimo e secreto - e nisto é herdeira do Romantismo.
Como nos admirarmos de que tal proposta seja tão pouco compatível
com a superficialidade, a pressa e o pouco caso com o sentido que perpassa nossa
vida atual?
Disso não se conclui que a
Psicanálise seja irrelevante; ao contrário, é seu gume crítico (tanto em
relação à cultura de massas quanto à “massificação” da experiência de si)
que nela perturba.
Não queremos ser incomodados, mas o fato é que esta cegueira nos faz
sofrer.
A Psicanálise apela a uma razão
ampliada, que inclua em si o que a sociedade contemporânea mais teme:
o
conflito, e modos de lidar com ele que não pretendem expulsá-lo dali onde
ele se enraíza – em nós mesmos.
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