A PSICANÁLISE PÓS-MODERNA
A neurobiologia como o novo materialismo.
A insistência de termos como novo , atual,
moderno, aplicados como adjetivo ao termo sujeito, apontam ao momento que
se vive não só na psicanálise, mas em quase todas as atividades ligadas ao
homem.
O momento atual, no que se refere à psicanálise , aparece
determinado pelo questionamento que as neurociências produzem nos fundamentos
da psicanálise, pois a neurobiologia ao negar a existência de um sujeito
desejante, e ao considerar as condutas humanas unicamente como fruto da
atividade neuronal condicionada pela ação dos neurotransmissores, radicaliza a
elisão do sujeito feita pela ciência moderna, produzindo com isso uma alteração
na responsabilidade que seria atribuída a um sujeito pelos seus atos.
Uma conseqüência clinica e
ética desta face da modernidade se impõe através do uso de fármacos na
terapêutica psíquica como único meio de transformação.
Esta proposta denuncia praticas nas quais o entendimento da
conduta humana é visto como efeito de um
cérebro sem sujeito.
Coloca-se no lugar do sujeito desejante uma mind, cuja
única verdade está nas entranhas dos neurônios.
Lacan desde os anos 60, no texto Ciência e verdade,
apontava o nada querer saber da ciência
frente à verdade como causa do sujeito.
Seria como efeito desta forclusão da verdade como causa do
sujeito , como diz Lacan que a
ciência faz, que a neurobiologia aboliu o sujeito desejante ?
A posição de Lacan sempre foi clara, tendo afirmado, no
texto Ciência e Verdade: "...somos sempre responsáveis da nossa posição de sujeito.
Que isto se chame, onde quiserem
terrorismo".
O lugar do sujeito moderno
na psicanálise
Propondo-se articular a
psicanálise com a modernidade se poderia falar numa relação do sujeito com a
historia?
Lacan ainda em Ciência e verdade ,
posicionado-se sobre esta questão, utilizou a expressão "um certo
momento do sujeito" como também ainda referindo-se ao sujeito, falou
de "um momento historicamente definido", e ainda, em relação
ao sujeito, se refere a "um momento historicamente
inaugural".
A razão desta possibilidade de se temporalizar o sujeito, está na
afirmação de Lacan de que o sujeito está definido em relação ao saber.
Como o saber muda , o
sujeito também muda, causando o surgimento de um sujeito novo em função da nova
relação deste com o saber.
Para Lacan o sujeito novo atualmente,
seria o sujeito da ciência em tanto fundamento da modernidade do
sujeito.
Levando-se em consideração a articulação existente entre sujeito e
historia, para alguns autores o sujeito pós-moderno seria caracterizado por não
ser mais um sujeito que tenha um saber compartido socialmente, o sujeito
pós-moderno seria um sujeito sem paradigmas de consenso, seria o sujeito
decorrente da mudança dos costumes sexuais, das mudanças ideológicas, seria o sujeito que sofre da ausência de
ideais preestabelecidos.
Seria este sujeito
pós-moderno conseqüência do novo materialismo introduzido pela neurobiologia atual,
e que se caracteriza pela ausência de um sujeito desejante, ou seria este
sujeito pós-moderno a conseqüência do "declínio" da Função Paterna,
como apontou Lacan?
Qual a diferença de um
sujeito moderno e o pós-moderno?
Para Lacan o aparecimento de um sujeito que se poderia chamar de
moderno, está historicamente localizado a partir da publicação das Meditações
metafísicas de Descartes , que com a operação do Cogito teria
produzido este sujeito novo.
Situar o sujeito moderno como decorrente da operação Cartesiana, é
centraliza-lo em relação à uma razão objetiva. Este sujeito "reflexivo", seria moderno por diferir de um
anterior cuja característica seria a de ser centro do conhecimento.
Para Lacan o sujeito cartesiano é pressuposto da noção de
inconsciente, pois a psicanálise, tal qual Descartes, parte do fundamento do
sujeito da certeza, ou seja o sujeito pode ter certeza de si desde que se possa
destacar no seu discurso duvidas que aparecem como reveladoras de um sujeito
dividido.
O lugar do "eu
penso" é para Freud independente do "Eu sou".
A questão da "modernidade" porem só se transformou em
questão recentemente. Segundo Foucault , foi Kant quem inaugurou uma nova forma
de pensar ao se perguntar sobre a "atualidade", fazendo do tempo
presente um acontecimento a ser formalizado., e com isso introduzindo na
filosofia a probematização da atualidade, instante onde Kant buscava os signos
do progresso.
Passando por Hegel, a questão do "moderno" se
cristalizou com Max Weber e Habermas que foram os primeiros a usar a
palavra modernização como terminus associando-a
à formação de capital, ao estabelecimento de poderes políticos centralizados,
mas também propondo a modernidade como
algo que se auto-consome, por ser ela uma intercessão entre tempo e eternidade.
Também as referencias de Lacan à ciência moderna, ao pensamento
moderno, à era moderna, mostram sua preocupação com a relação do sujeito com o
momento histórico no qual ele esta inserido.
No seminário III, sobre as
psicoses, Lacan sugere que um dos temas que caracteriza o pensamento moderno é
a idéia de um personagem vivendo só em uma ilha deserta, e menciona a Robinson
Crusoe.
Lacan retoma esta referencia no seminário de Um Outro a um
outro para sugerir que esta idéia representa o começo da era moderna,
pois seria fundamental para o homem
moderno poder afirmar sua independência, e sua autonomia em relação a todo amo
e a todo Deus.
Lacan faz referencia ao homem moderno relacionado-o ao discurso da
liberdade, da mesma maneira que faz referencia à uma arte moderna, e à ciência
moderna , que segundo ele se caracterizaria
pela eliminação do simbolismo religioso dos céus, o que possibilitou
estabelecer os fundamentos da física atual.
Para Lacan a ciência
moderna foi um acontecimento que decorreu como efeito do monoteísmo, fato que teria instaurado
um mundo ordenado ao redor de um centro, abrindo com isto uma concepção
unitária do Universo.
Ainda dentro desta perspectiva a ciência teria sido possibilitada
pelo mito bíblico da criação ex-niilo, o que teria posto em funcionamento a
potência creacionista do significante, outra condição das ciência .
Assim também a resposta dada a Moisés pelo anjo de Iavé que
apareceu na sarça ardente, Sou o que sou, é o que
faz com que Deus apareça como subjetividade
absoluta , e eqüivaleu a um tu não saberás da minha verdade,
fazendo a fronteira entre saber e verdade .
O sujeito pós-moderno
Para Lacan foi Descartes quem através de seu cogito fundou o
sujeito moderno. Caberia então a pergunta: há um sujeito que seja atual, e que
fosse produzido por um saber novo compartido nos dias de hoje?
Um ultimo destino do
sujeito surgiu atualmente no campo do saber e é sua desconstrução, o que funda
um novo momento na filosofia, a que se chamou de "pós-estruturalismo" e que apresenta a morte
do sujeito.
A possibilidade da inexistência de sujeito, teria inaugurado
segundo alguns autores o que se pode chamar de subjetividade pós-moderna.
Ainda para estes autores o
sujeito pós-moderno não seria analisável, e este fato responderia pelo que eles
chamam de "Declínio da psicanálise".
Questão que, levando-se em conta que existe uma articulação entre
sujeito e historia, permite perguntar: como situar a responsabilidade deste
novo sujeito no mundo moderno? Em que a
psicanálise pode contribuir para modificar as formas contemporâneas do mal
estar na cultura?
A questão que se coloca para os psicanalistas preocupados com a
atualidade, seria então, como fazer um mundo novo, se todo discurso, todo laço
social é semblante?
Como modificar a
irresponsabilidade caracterizada pela ausência de sujeito na proposta da
modernidade, exemplificada pela neurobiologia e restituir o lugar do sujeito,
tal como aponta a psicanálise, sem cair nos ideais?
O analista entenderá sua época a partir dos novos semblantes que
servem para distribuir o gozo, sendo a tendência para o gozo a direção da
subjetividade moderna.
Poderíamos ate mesmo pensar que a contribuição da psicanálise à modernidade seria a invenção de um novo
Cogito, que se poderia chamar de lacaniano , Cogito este definido como a
conseqüência do inconsciente frente ao "penso logo sou" que produz
"ou eu não penso ou eu não sou ", introduzindo ai um ser do gozo .
Para responder a estes desafios, o analista, ele mesmo também um
produto da modernidade, deve avançar, assim como o inconsciente avança.
Enquanto os analistas se anestesiam entre si com suas querelas internas,
a psicanálise passou a ser a bola da vez para os intelectuais que se
dedicam a critica das produções cientificas.
Exemplo disso é a recente versão para o português do livro editado
pelo The New York review of books, de autoria de Frederick
Crews, The memory wars: Freud’s
legacy in disputee e
também Imposturas intelectuais de Sokal e Bricmann. Há também, ainda sem versão
em português o livro de Richard Webster, Why Freud was
wrong, além dos antigos A psicanálise
essa impostura de Pierre Debray-Ritzen, e A decadência do Império Freudiano de Eysenk .
Todos eles tem em comum a tentativa de produzir um confronto da
psicanálise com os modelos atuais da ciência.
Ciência que na área da
conduta humana está dominada pelas ciências cognitivas, que via filosofia
da mente se sustenta na neurobiologia. Neurobiologia que transcendendo
suas funções passou a ser o parâmetro de um novo materialismo, pretendendo,
desde sua perspectiva, abordar o sujeito, mesmo que negando-o.
Esta situação, embora definida dentro novos parâmetros, não é nova
para a psicanálise, sendo mesmo sua rotina prevista por Freud em As
perspectivas futuras da terapêutica psicanalitica ,onde diz que as criticas à psicanálise apenas
comprovariam sua veracidade. No entanto a verdade contida no recalcado é
diferente conforme o momento da cultura a que se refere. E é
na interpretação da expressão atual do recalcado a que estamos convocados.
As respostas a esta questão não pode ser indiferentes ao
psicanalista.
Dr. Marcio Peter de Souza Leite
·
Médico, psiquiatra
·
Psicanalista
·
Diretor-Geral da Escola Brasileira de Psicanálise-SP
·
Autor Psicanálise Lacaniana, Ed. Iluminuras, 1999
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