Filme:
“O Quarto de Jack”
– Um
Observatório do Édipo Lacaniano
Quando
adentramos no estudo da psicanálise, não raramente, nos pegamos fazendo
correlações e identificando conceitos psicanalíticos
em narrativas trazidas pelo cinema, literatura ou teatro.
Recentemente,
vivi esta experiência de forma muito marcante ao ver o filme “O quarto de
Jack”, coincidentemente na mesma época em
que estávamos estudando o Édipo em Lacan.
A apreensão da teoria ainda que demande uma grande
dose de abstração, ao mesmo
tempo nos incita a buscar ressonância com nossas experiências, sejam elas
vividas ou observadas.
Quando
assisti ao filme, tive a impressão de estar identificando os conceitos do Édipo
Lacaniano como se o fizesse a partir da lente de um microscópio, em
que é possível magnificar o objeto observado muitas vezes.
No filme que trata da relação de uma mãe e seu
filho, dois
elementos propiciam este tipo de observação; o primeiro é o confinamento espacial, pois o desenvolvimento da criança
junto à mãe, durante os primeiros cinco anos de vida, se dá num diminuto
quarto, sem contato físico com o mundo exterior; e o segundo é a dilatação do
tempo cronológico, considerando-se que cinco
anos supera em muito o tempo em que essa relação se restringe à díade
mãe-filho.
Neste trabalho
pretendo identificar e relacionar os três tempos do Édipo Lacaniano na história
narrada em o “O Quarto de Jack”, a partir da abordagem de Hugo Bleichmar 1.
Incialmente
apresentarei uma sinopse do filme, buscando informar ao leitor que não o tenha
assistido e, posteriormente, à medida que discorrer sobre a teoria, retornarei
à história, valendo-me disto quase como uma ilustração dos conceitos.
II– O filme “O Quarto de Jack” (Room)
O filme de 2015 é co-produção canadense-irlandesa,
dirigido por Lenny Abrahamson e baseado no livro de mesmo nome, da autora e
também roteirista do filme, Emma Donoghue.
A
história é narrada a partir do olhar de Jack, garoto de cinco anos, que desde
seu nascimento vive com sua mãe Joy, a quem ele chama de Ma, num quarto onde a
visão do mundo exterior se restringe a uma clara boia no teto e às imagens de
uma TV.
Joy tem vinte e quatro anos e há sete é
mantida nesse cárcere por seu sequestrador, a quem ela se refere como Velho
Nick.
Jack é fruto da violência sexual praticada
pelo sequestrador, e foi
desde seu nascimento a motivação que Joy encontrou para continuar vivendo
naquela condição tão adversa.
No
entanto, ao completar cinco anos, Joy percebe que é o momento de mostrar a Jack
que existe um mundo além das quatro paredes do quarto em que ele sempre viveu.
O menino, de imediato, reluta em aceitar
que haja uma realidade diferente daquela até então construída por sua mãe.
Porém,
ainda que, aparentemente, a proteção e o afeto da Ma lhe bastassem, Jack aos
poucos vai se deixando conduzir pela curiosidade de conhecer o mundo de fora e
participa do plano arquitetado por Joy
para enganar o sequestrador, Nick, e escapar do quarto.
Após a
fuga bem sucedida que devolve a liberdade a Jack e sua mãe, inicia-se a segunda
parte do filme, não menos aflitiva que a primeira, em que mãe e filho
enfrentarão grandes desafios, ela para reencontrar seu lugar e ele para se adaptar a um mundo até
então desconhecido.
III – O primeiro tempo do Édipo
No
primeiro tempo, o menino é o falo da mãe sem o saber e esta, por possuir
aquele, é a mãe fálica (BLEICHMAR, 1984, p.)
Na primeira cena do
filme, Jack narra seu nascimento: “Era uma vez…antes de eu chegar…,
você só chorava e via TV o dia inteiro…, até virar zumbi.
Mas eu
desci do céu pela claraboia até o quarto. E eu estava te chutando por dentro,
bum, bum, e daí eu sai no tapete com os olhos bem abertos e você cortou o
cordão e disse:
Olá, Jack”. A ternura da voz do pequeno narrador revela o quanto ele se sentiu bem
acolhido pela mãe ao chegar ao mundo.
Tanto as
condições adversas em que se encontrava Joy como a concepção decorrente de um
estupro levam-nos a pensar sobre que lugar ocupou Jack na vida psíquica dessa
jovem mãe.
Relembrando que Joy já se encontrava no
cárcere há dois anos quando nasceu Jack, podemos supor que a capacidade de gerar, trazer
ao mundo e cuidar de uma criança tenha lhe mobilizado um generoso quantum de
pulsão de vida.
Joy
depositou em Jack seu desejo de permanecer viva e ao fazê-lo o constituiu como
falo, segundo Lacan, o significante da falta. Por outro lado, quando
ouvimos de Jack: “… antes de eu chegar, você só chorava e via TV odia
inteiro, até virar zumbi.”, o vemos perfeitamente identificado ao
falo.
Nesse
ponto recorremos a Bleichmar quando indica a distinção que Lacan faz entre o
falo simbólico na estrutura edípica e o falo na subjetividade:
(…) Interpreta o falo, não a
partir da subjetividade dos que estão na situação edípica e sim a partir de uma
teoria que caracteriza o Édipo e a variação de seus tempos em função de como os
personagens fiquem situados em relação ao falo (BLEICHMAR,1984,p.).
Poderíamos
dizer que, nessa situação, a privação da liberdade e a consequente violência
impetrada a seu próprio Eu seriam para Joy a
representação simbólica de sua castração, condição esta a que todo sujeito está
submetido.
Investir
no desenvolvimento do filho significou para Joy dar nova dimensão à vida
circunscrita às quatro paredes do quarto e, ao fazê-lo, inscreveu em Jack sua
condição de falo, ao mesmo tempo em que ela própria se constituiu como mãe
fálica.
Em outra
sequência do filme, quando Jack fala de si, da mãe e até dos utensílios e
móveis presentes no quarto, percebe-se o quanto aquele espaço lhe é carregado
de sentido. Joy se configura perfeitamentena mãesuficientemente
boa de que fala Winnicott, pois a partir dos recursos que lheeram
disponíveis, ela foi capaz de propiciar as condições necessárias para o
desenvolvimento físico e psíquico de Jack.
Jack
responde de forma positiva aos cuidados da mãe, que se revelam na preocupação
com a alimentação, uso de suplementos vitamínicos que ela pede ao sequestrador
e até exercícios de ginástica realizados no pequeno espaço.
Ele realiza sem resistência e de forma lúdica
as tarefas determinadas pela mãe numa clara demonstração de que queria
agradá-la. Joy se apoia em livros infantis, programas de TV, brinquedos construídos por ela para
transmitir a Jack uma maneira de compreender sua realidade.
Até os
cincos anos de idade, a relação mãe-filho ainda se configura numa relação de
mutua completude que fica ainda mais evidente no gesto de Joy amamentá-lo com o
seio antes de dormir.
O tom da
narrativa de Jack na parte inicial do filme, em que ele descreve sobre sua
origem e de como é a vida no quarto, pressupõe uma situação de existência
harmônica, o que nos leva a pensar que ele próprio se veria como a imagem da
perfeição e sobre quem não se inscreve uma falta. Nesse sentido, podemos dizer
que Jack se vê identificado ao falo imaginário.
Falo imaginário é, assim, tudo o
que completa uma falta de perfeição, anulando a imperfeição. (BLEICHMAR,1984, p.)
IV – O segundo tempo do Édipo
No
segundo tempo, ambos deixam de ser o falo e de tê-lo, respectivamente, mas
ainda assim há um personagem que o é: o pai. (BLEICHMAR, 1984, p.)
Na sequência do filme, Jack completa cinco anos de
idade e Joy lhe comunica que farão um bolo de aniversário para comemorar.
Os dois
se dedicam a prepará-lo, e no momento da celebração, Jack cobra as velas,
alegando que não seria um verdadeiro bolo de aniversário se não tivessem
velinhas para serem apagadas.
A mãe
tenta explicar que não pediu velas ao velho Nick, o sequestrador, porque ela só
podia pedir um número determinado de itens e precisou optar por coisas de maior
prioridade para eles.
A explicação não foi suficiente para aplacar a
frustação de Jack, que protesta chorando muito.
Acredito
que essa cena poderia ser vista como a inauguração do segundo tempo do Édipo,
ainda que saibamos que o desenvolvimento psíquico não obedeça a uma sequência
cronológica linear tão demarcada.
Nesse
momento, uma falta se inscreve na relação mãe/filho, desfazendo-se a mútua
completude.
Do ponto
de vista da trama, supomos que a cena também instalou em Joy a certeza de que
sozinha seria incapaz de suprir as necessidades do filho e de que deveria lhe
falar sobre o mundo além das quatro paredes do quarto.
Pensando
no que diz Bleichmar sobre a situação dos personagens em relação ao falo para
caracterizar os tempos do Édipo em Lacan, diríamos que o lugar do “Pai” estaria
representado pelo mundo fora do quarto e sobre o qual se volta o desejo de Joy,
a mãe.
Nesse ponto, poderíamos
pensar por que Nick, o sequestrador, não ocuparia o lugar de “Pai” na estrutura
edípica?
Antes de
qualquer coisa, é bom que se diga que Joy, durante todo o desenrolar da
história, nega até para si própria, a paternidade de Nick e em nenhum momento menciona a Jack que
ele seria filho do sequestrador.
É como
que se o filho fosse fruto apenas dela
mesma. Aparentemente existiria um acordo entre ela e o Velho Nick de que este
não manteria contato com o menino, tanto que, quando de suas visitas noturnas,
Jack dormia ou ficava quieto dentro de um armário.
Por seu lado, Joy
atendia às demandas sexuais do sequestrador, sem relutância, como se fosse o
preço pago para preservar a segurança de Jack.
Deste
modo, vemos que não está em Nick, o sequestrador, a função daquele que
interdita o desejo da mãe em relação ao filho. Seu papel se manteve inalterado
durante a trama, seu olhar se dirigia unicamente para Joy, como objeto de
satisfação narcísica e o sintoma de sua psicose.
Voltemos
agora para o momento em que Joy diz a Jack que uma vez que ele já tem cinco
anos é capaz de compreender que, na verdade, existe um mundo fora do quarto e
de que forma ela chegou até lá.
O menino, de imediato, reluta em aceitar
que haja uma realidade diferente daquela inicialmente construída por sua mãe,
baseada nos móveis e utensílios existentes no quarto, nas histórias de livros
infantis e nos programas que ele via na TV.
Além
disso, resiste em aceitar que a mãe não esteja satisfeita com a vida que levam
juntos dentro do quarto.
O sofrimento de Jack nessa passagem se expressa na
frase: “Preferia continuar com quatro anos”.
Podemos
dizer que nesse momento Jack vivencia a dor de não ser mais aquele que supre o
desejo da mãe – não ser mais o falo.
V – O terceiro tempo do Édipo
No
terceiro, ninguém o é, o falo fica inserido na cultura, mas além de qualquer
pessoa. O falo se tem, mas não o
·
(BLEICHMAR,
1984, p.)
Como já
mencionado na sinopse, Joy elabora um plano de fuga para Jack e este não só
consegue sair como indica o cativeiro de onde a mãe também é libertada.
Após a fuga, inicia-se uma nova fase da
trama, onde a tônica será o desafio de ambos para se situarem no mundo fora do
quarto.
Nessa segunda
parte do filme, pretendo identificar algumas cenas que, a meu ver, ilustram bem
o terceiro tempo do Édipo lacaniano: se no quarto a relação simbiótica entre
mãe e filho permitiu a sobrevivência de ambos e certa sensação de que um era o
complemento do outro, do lado de fora eles se veem defrontados cada qual com
sua própria incompletude.
Ouso
dizer, que não mais se veem como falo, o falo deverá ser conquistado.
Quando
voltam para casa, Joy se depara com uma mudança estrutural na sua família,
pois, durante os anos em que esteve sequestrada, seus pais se divorciaram e a
mãe casou-se novamente.
Ela fica
muito decepcionada quando se dá conta de que a vida dos familiares prosseguiu
durante sua ausência.
Diríamos
que nesse momento a dor de Joy se traduz na percepção de não ser o falo da
família.
Para
Jack, chegar ao mundo fora do quarto significou um novo nascimento e isso
transparece até mesmo nas sensações de estranhamento em relação à claridade e
ao dimensionamento de seu corpo diante de um espaço infinitamente maior do qual
ele estava acostumado.
Além disso, ele vivenciará a separação em
relação à mãe, pois Joy mergulha num profundo estado depressivo que culmina
numa tentativa de suicídio.
Vemos
que, diante dessa situação, Jack, apesar de ter vivido até então numa condição
tão adversa, foi investido pela mãe com recursos psíquicos que o capacitam a
enfrentar essa difícil fase de seu desenvolvimento.
Contando
com a ajuda da avó, personagem muito amorosa, e da disposição do companheiro da
avó, o garoto vai conseguindo paulatinamente se adaptar à nova situação de
forma fortalecida, digamos que assim vai se dando sua inserção na cultura e aceitação de que há
uma lei a que todos estão submetidos. Numa das cenas, ele declara à
avó que a ama. Nessa frase fica estabelecida sua capacidade de se ligar a novos
objetos.
Há uma
cena do filme que considero bastante representativa do caráter circulante do
falo – os personagens o têm, mas não o são. Ela acontece quando Jack pede à avó
que corte seus longos cabelos, que até então não os cortava porque continha sua
força, uma menção à história de Sansão, contada pela mãe.
Depois de
cortados, ele pede à avó que leve o cabelo para a mãe que estava internada
recuperando-se da tentativa de suicídio e explica-lhe que, naquele momento, ela
é quem precisava mais de força. Nessa
representação simbólica, Jack reconhece a castração da mãe e a sua própria,
admitindo que algo fora dele possa ajudá-la. A força que estava com ele, pode
ser transferida a Joy e a qualquer outro que dela necessite.
VI – Final
Na última
cena do filme, a pedido de Jack, Joy o acompanha até o quarto onde viveu seus
cinco primeiros anos. O garoto percorre o quarto como que procurando algo de si
que pudesse ter deixado lá, mas aos poucos vai sentindo certo estranhamento,
pois talvez não mais identifique aquele local
com as boas lembranças de uma fase de sua vida.
Partem
deixando para trás uma experiência traumática, mas levam consigo a construção
de uma subjetividade calcada no amor.
Segundo
Lacan (apud BLEICHMAR, 1984), o que determina que o menino deseje ser o objeto
do desejo da mãe não é a dependência vital, mas sim a dependência de amor. Joy, numa
condição totalmente desfavorável, conseguiu amar e dar vitalidade a Jack.
DRA. DALVANIRA DE LIMA
PSICANALISTA
Fonte de consulta e Referência:
BLEICHMAR,
H. (1984) Introdução ao Estudo das Perversões:Teoria do Édipo em
Freud e Lacan. Porto Alegre: Artes Médicas.
https://centropsicanalise.com.br/2019/02/17/pais-de-lima-dalvanira-filme-o-quarto-de-jack-um-observatorio-do-edipo-lacaniano-ciclo-iii-maio-2016/