segunda-feira, 11 de junho de 2012

A Simbologia e a Contemporaneidade do Divã

A história, a simbologia e a contemporaneidade do divã, móvel emblemático do ambiente psicanalítico com todos os seus significados

"Meu eu interior derreteu-se, logo que me coloquei no sofá velho, esfarrapado.

 

Como o meu corpo afundou no macio de algodão, a minha alma desmoronou com ela, as lágrimas encheram meus olhos. Não teria sido o mesmo se eu estivesse sentado em uma cadeira.

 

Qualquer coisa que suporta minhas costas reforça minha resistência."

Essa ode ao divã – peça irremovível do cenário psicanalítico que nele persiste mesmo quando nele não está presente – foi entoada por um paciente, conforme descrito por Sebnem Senyener, jornalista e novelista turca, em seu artigo “How the divan became the couch?“. Revela também o papel desse móvel – menos um mobiliário inerte, mais um interlocutor da dinâmica psicanalítica – que se tornou tão símbolo da psicanálise como o próprio Freud.

Pode-se dizer mesmo que a psicanálise não se reconhece como tal sem o divã, em que pese a peça não ser exclusiva dos consultórios, nem ter “nascido” com o advento da psicanálise.

Mas há que se reconhecer que sem a técnica criada, nominada, desenvolvida e difundida por Freud, essa peça de mobília – hoje com ares de vanguarda, art noveau, que serve como espreguiçadeira para o corpo e expansiva para a mente – não passaria de um sofá sem encosto, esquecido no canto da sala.

A Berggasse 19, em Viena, Áustria, abrigou o consultório de Freud entre 1891 e 1938, quando o psicanalista fugiu para Londres, escapando das garras do nazismo que haviam se apoderado da Áustria.

O divã foi com ele. Peter Gay assim relata o fato em “Freud, Uma vida para o nosso tempo” (Cia. das Letras, 2005): “Os bens que tivera de resgatar das mãos dos nazistas – seus livros, antiguidades, o famoso divã – finalmente haviam chegado [a Londres], e foram arrumados de modo que os dois quartos do térreo se pareciam muito com seu consultório e o escritório anexo na Berggasse 19”.

Quando Anna Freud, filha do psicanalista, morreu, o divã foi para o Freud Museum, em Londres, onde se encontra até hoje e onde pode ser apreciado (e o é por cerca de 40 mil pessoas por ano) em toda a sua sisudez e sobriedade. Trata-se de uma peça que seria absolutamente vulgar não tivesse ocupado na paisagem da nascente técnica freudiana um lugar tão especial, constituindo mesmo um sinônimo da psicanálise.

Isso porque o divã aparece no setting junto com a técnica freudiana. Gay, o mais renomado biógrafo do austríaco, diz: “Freud usou pela primeira vez o termo psicanálise em 1896, em francês e a seguir em alemão. Mas desde algum tempo antes, ele vinha trabalhando na direção da psicanálise. De fato, o famoso divã, presente de agradecimento de uma paciente, fazia parte da mobília de seu escritório, quando mudou-se em setembro de 1891, para a casa da Berggasse, 19”.

Em nota de rodapé observa: “Entre algumas anotações que Marie Bonaparte compilou para uma biografia de Freud, encontra-se o seguinte apontamento sem data, em francês: “Madame Freud me informou que o divã analítico (que Freud levaria para Londres) foi lhe dado por uma paciente agradecida, Madame Benvenisti por volta de 1890”).

O divã chega assim às mãos de Freud por meio de uma ex-analisanda que lhe quis fazer um mimo e, com isso, colabora na construção de uma das mobílias mais icônicas da história.

Comensais no Leito

Uma peça que entra na história pelas mãos dos romanos.

No auge do Império, os comensais se deleitavam com quitutes como arganazes e perdizes, debruçados sobre divãs. A peça também era central nas orgias promovidas pelos cidadãos de Roma.

Muito mais tarde, o califa Omar I, responsável pela expansão do Islã pelo norte da África e Europa entre os anos de 634 e 644, instituiu uma lista de pensão chamada divã. Todo soldado que tivesse seu nome na lista recebia bens dos povos conquistados.

O vocábulo divã passou, por extensão, a significar instituição financeira e no século XVI, no Império Turco-Otomano, a identificar a sala onde se reunia o Conselho de Estado. Para o seu conforto, os líderes otomanos se valiam de almofadões neste Conselho e logo essas almofadas começaram a ser designadas por divã.

Os turcos levaram a moda a Europa que lá se fixou onde começou a recobrir sofás, e assim – a exemplo do que ocorreu com o Conselho – tomar-lhe a “identidade”. Sofá virou divã.

Mas até Madame Benvenisti presentear Freud com um divã azul, a peça era apenas elemento de decoração. No consultório do psicanalista foi muito mais do que isso. De novo Gay: “O famoso divã constituía por si só um espetáculo, amontoado de almofadas, com um tapete aos pés para uso dos pacientes, caso sentissem frio e coberto por um tapete persa, um Shiraz.” A elegância e tranquilidade aparentes que convidavam o paciente a deitar-se e a divagar por sua história não traduzia a tempestade emocional que poderia assolar o analisando.

Recostado em seu leito, de costas para o analista, com vistas para o teto – metáfora do que pode ser impeditivo ou do que pode ser rompido – o consulente se ajusta a um espaço que já foi comparado ao leito de Procusto, o personagem da mitologia grega que oferecia repouso aos viajantes. Seria um belo anfitrião não tivesse ele o hábito de amputar os membros daqueles que não se ajustavam às medidas da cama ou esticar os que não a preenchessem por inteiro.

O divã do analista, em verdade, é tanto pró como anti-procustiano.

Procusto, que significa “o esticador”, mantinha-se intolerante às diferenças imanentes entre as pessoas e procurava igualá-las cortando ou estendendo seus corpos, tendo por medida seu leito, um leito que só se ajustava a ele, Procusto.

À Pallas Atenas, deusa da sabedoria, alega: “As diferenças são injustas pois permitem que uns se sobressaiam e subjuguem os demais; minhas camas acabam com as diferenças, igualando a todos os homens. Isto é justo. Isto é razoável.” Aqui, o divã do analista revela sua faceta procustiana, seja qual for a face que se olha.

Por um lado, iguala as pessoas permitindo que todas deem corda aos seus instintos primitivos, ao oferecer um colo que pode ser o do pai, da mãe ou de alguém próximo. Por outro, reconhece a singularidade de cada um e se adapta às suas demandas, abrindo mão de dogmas, teorias e constructos que por mais “gerais” que sejam precisam ser especificados no setting.

Contratransferência Latente

Esse lugar incomum ocupado pelo divã na clínica não ocorreu por acidente.

Freud cedo percebeu que o paciente precisava de algo que o dispusesse a liberar sua mente e, de preferência, sem a interferência do olhar do analista.

O convite ao divã, feito pelo analista ao analisando, funciona como uma espécie de contrato terapêutico.

A peça é um significante – no sentido mais lacaniano do termo – que explicita a aceitação da transferência entre os dois agentes da clínica. Citando Fenichel em “Problemas da técnica analítica”, Yara Belchior destaca: “O divã é um relaxamento para o paciente e alívio para o analista do incômodo de ser olhado”.

O móvel serve, deste modo, de facilitador entre os agentes do diálogo.

Promove, no analisando, o expressar livre e desassombrado dos seus conteúdos, e protege o analista que pode expressar caras e bocas sem o perigo de ser reconhecido pelo analisando como alguém que se choca com o que ouve. O efeito de tais esgares no paciente pode ser devastador.

Isso porque há uma idéia de cumplicidade entre analista e analisando.

Deitado no divã, o paciente se coloca na posição de quem recebe (embora seja ele o que mais emita) e isso pode ser pouco confortável para vários deles. Há pacientes que se sentem frágeis, vulneráveis não só por estarem deitados como por perderem de vista a face do analista. Se o atendimento ocorrer, portanto, com o paciente sentado ou recostado, olhando e sendo olhado pelo analista, este precisa trafegar na difícil fronteira entre o interesse genuíno (que estimula o paciente a falar) e a serenitude plástica (que recebe o conteúdo do paciente sem emitir juízo de valor por meio de expressões faciais).

Um psicanalista treinado, experiente, conseguirá realizar esse feito com razoável competência, ainda que uma vez ou outra escorregue em emoções ou mesmo falas que traem uma contratransferência latente.

Mas não é o caso de se punir, porque o paciente voltará para a próxima sessão. O prejuízo não é perene.

Estamos falando, afinal, de pessoas.

O sujeito sentado à cabeceira do divã é tão humano quanto o sujeito deitado no leito.

E essa proximidade – quando não o face to face mais completo – permite recolher os mais antigos fragmentos da história, quando o divã era peça de festivais sexuais na Roma dos césares. A sexualidade e suas (não) manifestações sempre foram o arcabouço constituinte da teoria psicanalítica e o próprio divã, que serviu para o repasto de corpos entre os romanos, continuou com essa vocação ao longo da história até se depositar na psicanálise.

A pintura orientalista do divã coberto com tapetes e almofadas, geralmente com uma odalisca seminua deitada sobre ele é característica. No tempo de Freud, a figura deixava entrever a idéia, corrente na Europa, sobre a sexualidade dos turcos, tidos como viciados em todos os tipos de experiência erótica, algo que o Ocidente judaico-cristão tanto execrava como invejava. Qualquer artigo turco vinha carregado dessa simbologia sexualizada.

Potência Turca

O divã de Freud era coberto por tapetes turcos.

O primeiro deles lhe foi presenteado por Moritz, um parente distante. Comerciante em Salônica, à época uma província do Império Turco e um centro do comércio de escravos brancos, Moritz adquiriu o tapete na cidade portuária turca de Izmir (atual Esmirna). Sabedor da idéia que os europeus faziam dos turcos em relação ao sexo, Moritz muito provavelmente deu a conhecer a Freud sobre o uso nada incomum que esses faziam de tais tapetes, ao embrulhar nestes as escravas com as quais se presenteavam, numa reencenação da clássica aparição de Cleópatra diante de César. Senyener, no artigo citado, diz que Freud, em uma viagem à Bósnia-Herzegovina [que fazia parte do Império Austro-Húngaro] a fim de observar os hábitos de seu povo – como ele mesmo viria a informar vários colegas, não se deu conta de um detalhe primordial em sua vida naquele momento: sua cunhada Minna, então objeto presumido, controverso – e nunca confirmado – de sua paixão (*).

Senyener continua: “É assim que o divã "tornou-se um veículo de confissão para o Oeste”.

Uma confissão surda que Freud procurou esconder/sublimar também no divã. Ao tapete que ganhou de Moritz seguiram-se vários outros com os quais ele recobriu o divã, o chão e as paredes do consultório, numa tentativa – talvez – tanto se apropriar da “potência turca” exibindo-a por meio dos acessórios, como também de camuflar o leito de Procusto onde possivelmente desejava Minna. Não sem razão é por essa época, Freud escreve “Morte e Sexualidade” e faz nova visita a Trebinje, próximo a Ragusa, na Bósnia Herzegovina durante o verão de 1898.

O que Freud foi buscar entre os turcos ainda é motivo de controvérsia, mas em contato com o Dr. Alois Pick médico austríaco que servira na guarnição local, este lhe falou sobre o caráter geral e a sensibilidade dos "turcos" (o termo “turco” era reservado a maioria dos habitantes da Bósnia) que mesclava resignação admirável em relação às vicissitudes do destino e um hedonismo sexual de importância verdadeiramente suprema.

Peter J. Swales, historiador galês da psicanálise, em seu artigo "Freud, Death and Sexual Pleasures: On the Psychical Mechanism of Dr. Sigm. Freud" (Arc de Cercle, vl. 1, jan. 2003) lembra que o ensaio escrito por Freud, em 1898 (“Morte e Prazer Sexual") estava relacionado com a notícia de um paciente sexualmente perturbado que se matou. Quatro anos antes, consultara seu amigo Breuer sobre sintomas cardíacos que vinha apresentado. No entanto, em 1898, ele já não acreditava que tivesse alguma doença cardíaca. Swales conclui que "a ambiguidade da noção do coração como um órgão doente", serve para codificar – e ainda aqui para trair – seu amor e sua paixão pela irmã de sua esposa." Foi neste estado de coisas que ele cunhou um aforismo bem conhecido da Turquia: "Baldiz, tatlidir Baldan". A tradução – “A irmã da mulher é mais doce que o mel” – revela bem o que ia pelo coração do psicanalista e seu desejo inconsciente de tornar-se um sultão, pelo menos no quesito mulheres.

Olhares Trocados

Swales prossegue: “Freud iria criar para si um harém de fato – Martha, Minna, Emma, Fanny, Marie Helene, Lou, Ana, etc – com o divã real como a sua própria organização de princípio." Todas elas passaram pelo divã de Freud (assim como, claro, vários homens) e todas elas manifestaram seus desejos inconscientes, reprimidos, recalcados que revelaram a uma pessoa que não conheciam e que, no setting, nem viam durante as sessões.

Deitadas numa peça de mobiliário, instigadas a questionar a própria vida, formaram o harém de Freud que usou o divã como metáfora tangível e substancial de sua teoria dos complexos, notadamente os sexuais, que desfilaram por anos a fio à sua “vista”. A natureza acolhedora do divã também é convidativa. E é convidativa também à brincadeiras sexuais, ainda que estas permaneçam no recôndito da dupla analista/analisando, indevassáveis a um e outro, num jogo de fala/escuta que se interrelaciona, se dinamiza, se completa e se desconstrói.

À Hanns Sachs, psicanalista austríaco, Freud disse certa vez: Given to the founder of psychoanalysis by one of his patients, Madame Benvenisti, about 1890, Freud's couch - covered with oriental rugs and chenille cushion - was used in his psychoanalytic sessions in Vienna.Here Freud's patients would recall and speak of their traumas, or say whatever came to mind before he interpreted their unconscious messages and memories.While the patient was lying on the couch, Freud sat out of sight next to it: "I cannot let myself be stared at for eight hours daily", he exclaimed to Hanns Sachs.

"Eu não posso me deixar ser olhado por oito horas diárias".

Entende-se que Freud tivesse essa dificuldade.

Afinal, ele teorizava a partir da prática e praticava o que desenvolvia em teoria. Sem referenciais que não os próprios (Charcot, Bleuer, Breuer não eram grandes paradigmas para o novo método que desenvolvia), precisava se proteger. Hoje se vê que o divã nem sempre é necessário na prática psicanalítica (e absolutamente dispensável em várias correntes da psicologia). Há quem acredita que sem o divã, o setting analítico fica engessado, regredido e as sessões não evoluem.

O Dr. J. D. Nasio, no livro “Um psicanalista no divã” deixa claro que com crianças o divã nunca é utilizado e que pacientes psicóticos não suportam o divã, já que esse os deixa uma sensação de deriva, sem uma âncora – o olhar do analista – em que se escorar.

Portanto, para além do divã, o que conta mesmo é o sujeito na sala que emite um olhar de acolhimento.

José Antonio Mariano é psicanalista e jornalista

Repassando: www.drluiz.com



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