domingo, 24 de agosto de 2014

"A Psicanálise e o Esvaziar-se de Si"

“A Psicanálise e o Esvaziar-se de si”

Gilberto Safra



“A palavra foi dada ao homem para encobrir seu pensamento”, Stendhal
Por André Toso

Entre as inúmeras contribuições da psicanálise para a humanidade, talvez a que mais se destaque é a abertura da possibilidade de escutar o outro.
A figura do analista representa um esvaziar-se de si mesmo e abrir-se para as inquietações, conflitos e, fundamentalmente, para o discurso do paciente.
Para tanto, é necessário que o analista deixe do lado de fora de seu consultório todas as suas opiniões morais e escute as demandas do paciente sem julgamentos ou concepções pré-definidas.
É escutar o outro em sua inteireza, de forma depurada e sem misturar-se com o que é falado. É ouvir por ouvir, sem a ansiedade de uma resposta que se enquadre em um diálogo. É ouvir sem sequer pensar em construir um diálogo racional.
O diálogo se constrói por si mesmo, nas entrelinhas, sensações e naturalidades da fala do paciente. É essa fala do paciente que leva à resposta do analista, como num eco. Não se trata de um diálogo construído: trata-se de um diálogo que simplesmente nasce em si mesmo.
Por isso mesmo, o psicanalista inglês Donald Woods Winnicott (1896-1971) diz que a sessão psicanalítica é um momento sagrado.
Sagrado, pois consiste em uma tentativa de encontrar a verdade que não está nas palavras e sim na essência do que é cada ser humano.
A verdade que não pertence nem ao analista nem ao paciente.
A verdade que pertence à própria experiência humana.
Uma verdade intangível, que se estabelece diante da singularidade de cada um e escapa a teorias ou enquadres.
Uma verdade que transcende – própria da experiência de cada paciente.
Uma verdade que nunca é totalmente revelada, mas pode ao menos ser parcialmente iluminada.
Uma boa análise objetiva libertar o paciente de suas próprias amarras fantasiosas e das amarras do meio social em que ele vive.
É libertar o paciente do discurso do Outro – como diria Jacques Lacan (1901-1981) –, do discurso dos pais e mães.
Mas esses pais e mães ultrapassam em muito a barreira familiar e não são apenas os biológicos.
A psicanálise busca libertar o paciente do discurso do poder, das instituições, tradições, imposições e até mesmo das leis que regem a vida social.
É libertar o paciente do discurso inventado pela própria história humana.
É desintoxicar a mente do excesso de discurso, do excesso de palavras, do excesso de regras estabelecidas que se estendem ao longo da trajetória humana.
O papel da psicanálise é reinventar a experiência humana contestando tudo que até então foi imposto ao sujeito pelo discurso externo.
É limpar os signos e símbolos em excesso que sufocam o humano e lhe tiram seu caráter misterioso, subjetivo, essencial e quase místico. A psicanálise trabalha com a palavra narrada para desgastá-la a ponto de ela perder sua importância central e restar apenas a essência. A palavra – que muitas vezes cega – é substituída pelo sentir.
É esse sentir que levará o paciente a criar sua própria ética.
Uma ética que não responde a instituições ou regras estabelecidas, mas que ecoa dentro de sua essência.
Uma ética que dispensa a obrigação e o apalavrado – que é essência em si mesma.
O paciente, ao estar diante de um analista que se esvazia para contê-lo, aprende também a esvaziar-se para conter todos que o cercam na comunidade.
Aprende a olhar o outro sem barreiras morais, respeitando as singularidades, experiências e vivências de cada um.
Um ser humano analisado aprende a respeitar o espaço de si e do outro, separando o seu querer e poder do querer e poder do outro.
Ele aprende a delimitar-se na relação com o outro, respeitando-o e sabendo instintivamente que para construir-se é preciso do outro, mas que esse outro também está ali para construir-se com ele.
Esse paciente aprende a olhar a si e ao outro respeitando o mistério da experiência humana.
Respeita-se a si, respeita-se o outro e respeita o próprio mistério do existir humano. É um ser que consegue esvaziar-se de si para acolher o outro.
É alguém preparado a conviver com unidade e em comunidade.

Gilberto Safra

Psicanalista .   Mestre e  Doutor em Psicologia Clínica e professor titular da Universidade de São Paulo (USP), docente do programa de pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica (PUC), coordenador do Laboratório de Estudos da Transicionalidade (LET) e do Programa de Formação Continuada (Profoco).Destaca-se na atualidade por uma abordagem que vai além da própria psicanálise na integração de várias áreas do saber, tendo contribuído no diálogo entre disciplinas tais como a psicologia, literatura, filosofia, antropologia e teologia. Safra desloca o pensamento inicial da psicanálise edipiana para as questões fundamentais da constituição do Humano.


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