“A Psicanálise e o Esvaziar-se de si”
Gilberto Safra
“A palavra foi dada ao homem para encobrir seu pensamento”,
Stendhal
Por André Toso
Entre as inúmeras
contribuições da psicanálise para a humanidade, talvez a que mais se destaque é
a abertura da possibilidade de escutar o outro.
A figura do analista representa um esvaziar-se de si mesmo e abrir-se para
as inquietações, conflitos e, fundamentalmente, para o discurso do paciente.
Para tanto, é necessário que o analista deixe do lado de fora de
seu consultório todas as suas opiniões morais e escute as demandas do paciente sem julgamentos
ou concepções pré-definidas.
É escutar o outro
em sua inteireza, de forma depurada e sem misturar-se com o que é falado. É
ouvir por ouvir, sem a ansiedade de uma resposta que se enquadre em um diálogo.
É ouvir sem sequer pensar em construir um diálogo racional.
O diálogo se
constrói por si mesmo, nas entrelinhas, sensações e naturalidades da fala do
paciente. É essa fala do paciente que leva à resposta do analista, como num
eco. Não se trata de um diálogo
construído: trata-se de um diálogo que simplesmente nasce em si mesmo.
Por isso mesmo, o psicanalista inglês Donald Woods Winnicott
(1896-1971) diz que a sessão psicanalítica é um momento sagrado.
Sagrado, pois consiste em uma tentativa de encontrar a verdade
que não está nas palavras e sim na essência do que é cada ser humano.
A verdade que não pertence nem ao analista nem ao paciente.
A verdade que pertence à própria experiência humana.
Uma verdade
intangível, que se estabelece diante da singularidade de cada um e escapa a
teorias ou enquadres.
Uma verdade que transcende – própria da experiência de cada
paciente.
Uma verdade que
nunca é totalmente revelada, mas pode ao menos ser parcialmente iluminada.
Uma boa análise
objetiva libertar o paciente de suas próprias amarras fantasiosas e das amarras
do meio social em que ele vive.
É libertar o paciente do discurso do Outro – como diria Jacques
Lacan (1901-1981) –, do discurso dos pais e mães.
Mas esses pais e mães ultrapassam em muito a barreira familiar e
não são apenas os biológicos.
A psicanálise busca libertar o paciente do discurso do poder,
das instituições, tradições, imposições e até mesmo das leis que regem a vida
social.
É libertar o
paciente do discurso inventado pela própria história humana.
É desintoxicar a
mente do excesso de discurso, do excesso de palavras, do excesso de regras
estabelecidas que se estendem ao longo da trajetória humana.
O papel da psicanálise é reinventar a experiência humana
contestando tudo que até então foi imposto ao sujeito pelo discurso externo.
É limpar os
signos e símbolos em excesso que sufocam o humano e lhe tiram seu caráter
misterioso, subjetivo, essencial e quase místico. A psicanálise trabalha com a palavra narrada para desgastá-la a ponto
de ela perder sua importância central e restar apenas a essência. A palavra –
que muitas vezes cega – é substituída pelo sentir.
É esse sentir que levará o paciente a criar sua própria ética.
Uma ética que não responde a instituições ou regras
estabelecidas, mas que ecoa dentro de sua essência.
Uma ética que
dispensa a obrigação e o apalavrado – que é essência em si mesma.
O paciente, ao estar diante de um analista que se esvazia para
contê-lo, aprende também a esvaziar-se para conter todos que o cercam na
comunidade.
Aprende a olhar o outro sem barreiras morais, respeitando as
singularidades, experiências e vivências de cada um.
Um ser humano analisado aprende a respeitar o espaço de si e do
outro, separando o seu querer e poder do querer e poder do outro.
Ele aprende a
delimitar-se na relação com o outro, respeitando-o e sabendo instintivamente que
para construir-se é preciso do outro, mas que esse outro também está ali para
construir-se com ele.
Esse paciente aprende a olhar a si e ao outro respeitando o
mistério da experiência humana.
Respeita-se a si,
respeita-se o outro e respeita o próprio mistério do existir humano. É um ser
que consegue esvaziar-se de si para acolher o outro.
É alguém preparado a conviver com unidade e em comunidade.
Gilberto Safra
Psicanalista
. Mestre e Doutor em Psicologia Clínica e professor
titular da Universidade de São
Paulo (USP), docente do programa
de pós-graduação da Pontifícia
Universidade Católica (PUC),
coordenador do Laboratório de Estudos da Transicionalidade (LET) e do Programa
de Formação Continuada (Profoco).Destaca-se na atualidade por uma abordagem que
vai além da própria psicanálise na integração de várias áreas do saber, tendo
contribuído no diálogo entre disciplinas tais como a psicologia, literatura,
filosofia, antropologia e teologia. Safra desloca o pensamento inicial da
psicanálise edipiana para as questões fundamentais da constituição do Humano.
Fonte consultada: https://sppsic.wordpress.com/tag/gilberto-safra/