O juiz, o psicanalista e o estado de exceção
Palavras cortam feitas lâminas.
Sentenças e atos
são decisões que recortam o mundo das normas e dos fatos. E nada mais será como
antes.
Saindo da sala de
audiência ou do consultório do psicanalista, o demandante sabe que algo
aconteceu ali, algo que rompeu com a mesmice, com a rotina, com o dia-após-dia,
com o previsível, o explicável, com a ordem estabelecida.
Juiz, se for juiz
e não um mero aplicador de leis, sabe do hiato entre o fato e a norma, entre a
regra e a exceção, entre a teoria e a práxis, a validez e a eficácia, a
legalidade e a legitimidade.
Psicanalista que
é psicanalista estudou as falhas na linguagem, falhas essas, por onde
transparece o inconsciente, como nos ensinou Sigmund Freud.
Sabe da radical
diferença entre a cultura e o sujeito, entre o masculino, escravo da lei
edípica que todos são obrigados a cumprir, e o feminino, a exceção, a invenção,
como ensinou Jacques Lacan.
Decisões. Juízes
e psicanalistas tomam decisões.
Cometem atos, muitas
vezes dolorosos, que implicam os sujeitos, que os responsabilizam.
A decisão do
juiz, da jurisdição, diz da justiça que só se faz por meio da força da lei,
como diz Jacques Derrida.
Essa força está
instalada no direito, pois sem a força da lei, a norma resta letra morta. Os
revolucionários franceses fizeram da força da lei sua pedra angular. Sem força
não há lei, não há ordem, não há direito.
A justiça
contrasta com o direito. Situada no hiato entre a lei e o mundo vivo, entre a
norma e os fatos, desmistifica o direito, desconstrói sua universalidade, seu
cálculo, sua linguagem neutra. Justiça é feita caso a caso.
A decisão do juiz
é sempre subjetiva. Sujeito da história, o juiz faz história, porque cada
decisão rompe o sistema do cálculo normativo para criar algo novo: uma nova
situação, um novo direito. Como não consegue agradar a gregos e troianos, a
justiça provoca dessimetrias e, portanto, mudanças violentas no estatuto das
partes.
Assim, o ato do
juiz, a decisão judicial, desconstrói constantemente o direito, ele próprio
fruto do ato da força.
Justiça nos
angustia.
Desconhecida por
natureza, infinita e incalculável, ela é “rebelde à regra”, permanece um
“desejo no horizonte”, como quer Jacques Derrida.
O juiz que é juiz
é um rebelde. Não bate o martelo em cima da mesa para restabelecer a ordem, mas
cinde solitariamente e solidariamente os arrazoados das partes.
Revoluciona o
mundo simbólico da norma, desmistifica o imaginário pelo qual “a cada um se
atribui o que é seu” e, pelo qual, “a justiça tarda, mas não falha”.
Aplicando a
justiça, o juiz toca o real, aquilo que “não tem lei”, como diz Jacques Lacan.
Assim, a justiça situa-se na falha da intersecção entre os três registros do nó
borromeano.
É sempre exceção,
algo que excede. Por isso mesmo, nunca pode ser feita para todos, permanece um
desejo vivo.
Carregando
consigo a violência, o direito está prenhe de seu próprio paradoxo: force de
loi (força da lei) para os franceses, Staatsgewalt (violência do Estado) para
os alemães.
A garantia da lei
é a não lei, a força, o estado de exceção.
Este pode ser um
Estado de exceção com “E” maiúsculo.
Pode ser também
um estado de exceção com “e” minúsculo. Dependendo de nossas escolhas políticas
(Carl Schmitt que o diga!), o Estado de exceção transfere para um ditador a
soberania, a capacidade de decidir na zona cega da validade da norma para,
desta maneira, garantir a ordem.
Por outro lado,
se acreditarmos às palavras de Giorgio Agamben, pela lógica do estado de
exceção, é permitido ao povo favelado cavar dutos de água potáveis clandestinos
e puxar luz com gambiarras na rede elétrica.
Diante da
necessidade, a norma é suspensa. O que vale é a (não) lei da sobrevivência.
Justiça se faz pela rebeldia. E as falhas na rede de água potável corroem o
morro.
A falha é a razão de ser da psicanálise desde Sigmund
Freud. Afasias, atos falhos, chistes, sonhos e sintomas, enfim, o mau
funcionamento do nosso aparelho de linguagem, são, como diz as portas de saída
do inconsciente habitado pro desejos recalcados pela culpa que a lei edípica
nos proporciona.
Para Sigmund
Freud, nossa cultura constrói-se a partir do recalque de nossas pulsões de vida
e de morte. O resultado é um tremendo mal-estar perante a cultura.
Para espantar o
mal-estar fazemos de conta que encontramos na cultura soluções para nossos
males.
Para cada doença
um remédio, para cada ato criminoso um tipo penal, para cada problema uma
solução.
Assim nos ensinam
nas universidades.
As contradições
na sociedade resolvem-se pela síntese dialética, divulgam os revolucionários
marxistas. A cultura e sua ordem nos contêm. Exigem um preço alto: neuroses,
psicoses e perversão nos lembram como a ordem cultural é furada.
Para além do
Édipo, o buraco é mais embaixo.
Se para a
psicanálise cada caso é um caso, a classificação dos pacientes em neuróticos,
psicóticos e perversos pode apenas auxiliar o psicanalista a realizar algo que
o aproxima do juiz: tomar uma decisão.
Decide sobre a
questão se o paciente é analisável, decide os rumos que o caso poderia ter seu
direcionamento, decide, enfim, o ato que suspende a fala do paciente e que o
desloca do lugar onde se encontra.
Para tanto, tem
que ser rebelde à lógica, desconfiar da norma e cortar com a lâmina da palavra
o discurso estabelecido.
O psicanalista
deixa desnudo o estado de exceção, estado sem lei, para dar passagem ao desejo.
Para o
psicanalista todos os pacientes são diferentes, são como se fossem uma mulher
que, avessa á estandardização, constantemente se inventa, como diz Jorge
Forbes.
Quando um cidadão
preterido em seus direitos provoca o poder judiciário, o juiz decide, embora na
base da lei, em nome da justiça, eterna rebelde à regra.
A
responsabilidade é do juiz e do sujeito responsabilizado, nesse caso, pelo
Outro.
Quando um
paciente procura um psicanalista, ele decide provocado pelo psicanalista.
Radicalmente
diferente dos demais, o paciente, o sujeito da psicanálise “pica” seus
conceitos e fantasias e tem, assim, a chance de reinventar, cioso de sua
responsabilidade diante do futuro. No fundo, é ele quem sabe.
Por isso, a
decisão, o ato de cortar com palavras o status quo, é dele.
Dra. Dorothee Rüdger é Psicanalista,
Advogada e Escritora