segunda-feira, 9 de abril de 2012

SOBRE A ÉTICA DA PSICANÁLISE

 

SOBRE A ÉTICA DA PSICANÁLISE

 

    
 

          Quando falamos de ética é quase inevitável pensar na moral, e discorrer sobre este tema frente a pessoas interessadas no assunto parece-me sempre muito difícil!

Isto me fez lembrar de um comentário feito por Mark Twain quando foi apresentar um ensaio Sobre a decadência na arte de mentir para o círculo de História e Antiguidades de Hartford: seu atrevimento era comparável ao de uma solteirona desastrada que tentasse dar conselhos na arte de amamentar às fecundas matronas de Israel.

 

Acho que o risco que se corre é sempre mais ou menos este.

 

          A preocupação com a ética é antiga e historicamente o tema tem sido dominado pela religião preocupada com a relação do sujeito com o outro.

 

Os profetas nunca se cansaram de asseverar que Deus nada exige de seu povo senão uma conduta de vida justa e virtuosa. E mesmo a exigência de crença nele parece ficar em segundo lugar, em comparação com a seriedade desses requisitos éticos.

 

O que se buscava era a abstenção de toda satisfação pulsional, condenada ainda como impura também por nossa moralidade atual, apesar da aparente liberdade sexual dominante em nossos dias.

      

    Sempre se esperou da ética resultados importantes. Freud a interpreta como “uma tentativa terapêutica, como um esforço para alcançar, através de uma ordem do supereu, algo até agora não conseguido por meio de quaisquer outras atividades culturais”.

 

O problema, para Freud, é que “a ética baseada na religião introduz suas promessas de uma vida melhor depois da morte”.

Atribuo a isto a pouca simpatia de Freud pelo tema!

 

E ele acredita, conforme afirma em O mal-estar na cultura (1930[1929]) que “enquanto a virtude não for recompensada aqui na Terra, a ética pregará em vão”. 
 
          A preocupação aparece através de um dos grandes mandamentos, já no terceiro livro do Pentateuco:Amarás ao próximo como a ti mesmo.

      

          São Mateus e São Marcos retomam este mandamento, cada um à sua maneira, e quando São Lucas trabalha esta questão, utilizando-se de um recurso dialógico, ele introduz um legista para perguntar a Jesus: quem é o meu próximo? 

 

 E Jesus responde com a parábola do bom samaritano, onde a resposta parece indicar que o próximo é o bom. Tenhamos presente, contudo, que na sua enunciação a parábola diz que os maus são o plural; os indiferentes - o sacerdote e o levita - singularmente dois: e o bom... um.

 

Não se poderia entender como o enunciado de uma proporção?

 

Talvez trançá-los?

 

Quer dizer, todos estão de acordo quanto a ser difícil reconhecer o mau como sendo o próximo, embora todos saibam que ele ronda, e que é preciso delimitar os direitos da sociedade contra o indivíduo e vice-versa.

 

          A distinção da ética com relação a moral foi proposta por Jacques Lacan.

Quando se ocupa desta questão, ele a retoma desde um jogo de palavras feito por Aristóteles entre  /  , para dizer - através do segundoêthos (este de pronúncia mais fechada) - que a ética de Aristóteles é uma ética de formação do caráter. Vejamos: usualmente se traduz o primeiro éthos, grafado com 'epsilon' e espírito brando, por ‘uso, costume, hábito’ e o segundo, grafado com 'eta', por ‘morada, estância, residência’ e mesmo por ‘estrebaria e curral’ quando se trata de animais.

 

O Prof. Donaldo Schüler trata esta questão de um modo muito interessante quando diz em Heráclito e seu (dis)curso que o êthos é a pele do homem, o que lhe permite habitar tanto a pele do cordeiro como a do lobo.  

       

   Este me parece ser o aspecto importante da ética: toda ação do homem tem sempre uma implicação, embora - como Pausânias deixa claro no Banquete de Platão - enquanto se realiza, uma ação não é de si mesma nem boa nem má.

 

Eu diria que depende de como se realiza; afinal quem não sabe das mentiras que se justificam. 

          Na Ética a Nicômaco Aristóteles começa dizendo que toda a ação tende para algum bem. Pois está certo! E aí encontramos um ponto de apoio para especificar rigorosamente a ética da psicanálise, dito de outro modo, de diferenciar o bem que se busca com a prática da psicanálise.

Digo prática na medida em que sua etimologia conota uma conversação mantida quando se freqüenta alguém. É isto, a psicanálise é uma prática do blá-blá-blá e a benção, a benedictio aí presente, implica em não dizer onde está o bem do outro e isto não por recusa nem por nenhuma negatividade imaginariamente implicada a alguma técnica e sim pela convicção da absoluta ignorância do analista em relação ao bem do outro.

O que o analista pode e deve fazer é ajudar o analisante, através da escuta de sua produção significante, a fazer a descoberta de sua própria morada, da pele que lhe é própria.  
   
          Esta conquista exige um tempo, mas enfim, como dizem as últimas linhas de As duas faces da moeda, um dos Maqâmât de al-Hariri (na versão de Rückert):

“Ao que não podemos chegar voando, temos de chegar manquejando (...).

O livro diz-nos que não é pecado claudicar.” 

Luiz Olyntho Telles da Silva

  
 

Homo homini lupus.  
(O homem é o lobo do homem).  
Plauto, Asinaria, II, IV, 88. 

Ethik ist aber Triebeinschränkung.  
(A ética é uma limitação da pulsão).  
S.FREUD, Moisés e o monoteísmo.

 

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