domingo, 8 de fevereiro de 2015

O CORPO E AS DIFERENTES FORMAS DO ADOECER HUMANO

O CORPO E AS DIFERENTES
FORMAS DO ADOECER HUMANO

O homem nunca se conformou com a fatalidade da doença; ao contrário, combativo, ele vem buscando meios para enfrentá-la e vencê-la desde o início da civilização — rituais religiosos, magias, ervas terapêuticas, sugestões, xamãs e muitos outros recursos foram e ainda são buscados numa tentativa de escapar de um desfecho às vezes inevitável.
Nesse contexto, surge a Medicina que vem, desde Hipócrates, se aperfeiçoando em dar respostas e criar terapêuticas que promovam curas, aliviem dores e adiem a morte, mitigando o sofrimento humano.
Contudo, há algo numa forma de adoecer que lhe escapa por extrapolar os limites do organismo, por se relacionar ao sujeito e não a vírus e bactérias, por estar além do discurso cientificista. E é aqui que entra a abordagem psicanalítica.
Ao contrário do que ocorre com a Medicina, em Psicanálise, a abordagem que é feita do sujeito é diferente na primeira, ele é falado, enquanto que, na segunda, ele é escutado e desnudado no mais íntimo de seu ser; aqui o desejo se esboça para além de uma demanda de tratamento.
A Medicina opera, pois, com o saber lógico e formal da ciência, enquanto a psicanálise opera com a escuta do Inconsciente. Saberes diferentes, porém operações que podem se somar.

Se para a Medicina o corpo é uma máquina, um organismo que pode ser abordado, manipulado, dissecado pelo olhar da ciência, para a Psicanálise ele é um organismo erogeneizado, marcado pela pulsão e pela linguagem, ambas inseparáveis, como numa banda de Moebius.
Mesmo antes do nascimento, quando um ser vivente é desejado e sonhado, ele já existe no imaginário dos pais, que lhe atribuem significantes e significados que interferirão em sua constituição futura. Nos primeiros anos, esse corpo é marcado libidinalmente pelos cuidados maternos e pelo desejo parental; só aos poucos o indivíduo vai dele se apropriando.
Dessa forma, o adoecer aos olhos da Psicanálise é diferente de aos olhos da Medicina por manifestar-se não apenas num organismo, mas num corpo marcado pela linguagem e pela pulsão.
Podemos dizer que esta diferença já pode ser observada em seus primórdios, desde a época em que Freud consegue escutar no sofrimento das histéricas o murmúrio de desejos advindos de uma instância desconhecida do eu — o Inconsciente — enquanto a Medicina só ouvia o piti e o desconsiderava.
Por outro lado, é no campo da Medicina que algo diferente no adoecer do corpo foi se destacando, não apenas a partir de Freud, como muitos gostariam de acreditar, mas desde os primórdios desta ciência quando se pensava na interferência da "alma" no sujeito. Porém, apenas em meados do século XIX, antes do advento da Psicanálise é que surge Heinrotz, um psiquiatra alemão, que reconheceu a influência das "paixões" em algumas doenças.
Ele foi o primeiro a utilizar o termo Psicossomática, sendo considerado por muitos o pioneiro nesse campo. Outros vieram depois dele sustentando a importância dos afetos no adoecer.

Com o surgimento da Psicanálise, essas idéias foram reforçadas e várias escolas psicanalíticas se dedicaram a estudar as manifestações psicossomáticas. Freud não se dedicou à pesquisa desse campo, mas pode-se dizer que a abordagem psicanalítica dessa disciplina não deixa de ser herança de seus estudos sobre as neuroses atuais (neurose de angústia, neurastenia e hipocondria). Ribeiro e Santana (2003) chegam a afirmar que Freud deixa, por meio das neuroses atuais, um grande legado para o estudo dos fenômenos psicossomáticos: "teorizar o sintoma somático como o produto da angústia — sem a mediação da repressão —, o caráter atual da etiologia e o sintoma como conseqüência da não satisfação da libido" (RIBEIRO & SANTANA, 2003, p.140-141).
A importância da angústia nesses estudos é inegável; ela irromperia mediante a impossibilidade da formação de um sintoma, trazendo desamparo ao eu.
Analistas de diferentes escolas se interessaram pelo tema, todavia, alguns entre estes cederam à tentação de tratar toda forma de adoecimento psicossomático como formação sintomática com raiz inconsciente, com um sentido psíquico, algo próximo à formação de sintoma nas neuroses.
Em algumas formas de adoecimento, pode-se fazer tal correlação, mas há um tipo específico de adoecer, cuja essência está sempre alhures, impossível de ser alcançada intelectualmente, que é tratado como um fenômeno — o FPS (fenômeno psicossomático).
Ele difere do sintoma por não ter estrutura metafórica. São
"fenômenos estruturados de modo bem diferente do que se passa nas neuroses, a saber, onde há não sei que impressão ou inscrição direta de uma característica, e mesmo, em certos casos, de um conflito, no
que se pode chamar o quadro material que apresenta o sujeito enquanto ser corpóreo". (LACAN, 2002, p.352)
Alguns seguidores de Lacan colheram estas e outras poucas idéias que esse autor deixou sobre a psicossomática e, a partir delas, desenvolveram uma teorização própria. Tais idéias norteiam o presente artigo.
O FPS é aqui trabalhado como uma das manifestações do real. Diferente do sintoma, que inscrito no registro simbólico revela o desejo inconsciente, o FPS é uma mostração não passível de ser decifrada pelo significante, ponto de angústia sobre o qual o indivíduo não possui um saber. Enquanto o sintoma se inscreve na dimensão da metáfora, dentro da cadeia de significantes que desliza de acordo com a significação fálica e se endereça a alguém, o FPS inscreve-se, como será visto adiante, na dimensão da holófrase, fora de qualquer significação, sem nenhum endereçamento.
Ele também se diferencia de somatizações já que, ao contrário destas, acarreta lesões com as quais o sujeito não se vê implicado e às quais não atribui sentido ou qualquer tipo de interpretação, como ocorre com as somatizações: "minha dor de cabeça é esse casamento"... "aquilo que não consegui dizer me embrulhou o estômago", etc. No FPS ocorre assim um contornamento do simbólico e algo do real faz incidência direta sobre o corpo.
Trata-se, pois, de um fenômeno de difícil abordagem teórica e que comporta uma contradição: se por um lado ele não é apreensível pelo significante, por outro é acionado por um significante que tem efeito traumático sobre o sujeito e é passível de tratamento pelo simbólico, ou seja, é possível a nós, como analistas, tratá-lo como nos é indicado pelo próprio Lacan em sua "Conferência em Genebra" (1998b).
Mas o que poderia levar à ocorrência de um FPS?
É possível falar em gênese de uma manifestação do real?
Gênese supõe relação de causa e efeito, na qual um elemento dá sentido ao outro, o que não se aplica nesse caso. Mas, por outro lado, autores como Miller e Valas estabelecem de forma interessante uma relação entre o surgimento do FPS e o trauma de modo semelhante à neurose, mas com a diferença de não ocorrer a intermediação do simbólico: "no que concerne ao psicossomático precisamente, tentamos dar valor ao efeito traumático de algum acontecimento que não foi traduzido quanto ao simbólico, mas que, em curto-circuito, marca o corpo" (MILLER, 1999, p.23); ou ainda "tudo se passaria de certo modo como se o sujeito sentisse a imposição sobre si das significações confusas do discurso do Outro que, à força de se repetir, causaria trauma" (VALAS, 1990, p.83).
Acredito que esta seja uma maneira interessante de se pensar o FPS — algo do real do trauma, escapando às leis da linguagem, não sendo traduzido em palavras e se manifestando como uma mostração no corpo.
Isto é ao mesmo tempo interessante e perigoso, pois se corre o risco de se cair nas malhas do conceito de sintoma, de se estabelecer uma relação de substituição numa cadeia na qual os significantes deslizam, e entre os seus intervalos surge o sujeito do inconsciente e o desejo pode ser pinçado.
Nada mais avesso ao FPS... Trauma, ponto duro de real... Aceito, como esses autores, esse desafio e tentarei, a partir deles, desenvolver estas idéias.


DO TRAUMA AO FPS (Fenômeno Psicossomático)
Trauma, este conceito tão caro à Psicanálise desde seus primórdios, época em que o sexual era proibido e velado, continua em voga ainda hoje quando o sexo é banalizado, veiculado pela mídia, vendido como mais um gadget do discurso capitalista.
Todos falam de ocorrências ditas traumáticas, querendo dizer com isso que algo marcou profundamente um sujeito levando-o a sentimentos e comportamentos inusitados; algo que é sempre externo e que por isso mesmo desresponsabiliza o sujeito tornando-o sempre vítima do infortúnio. Grandes mudanças se operaram na sociedade, nos costumes, mas o ser humano, ou melhor, o ser falante segue traumatizado e, apesar de toda a badalada liberação sexual da era contemporânea, pode-se dizer que segue recalcado, forcluído ou denegado.
Nem tudo o que se passa no psiquismo pode receber tratamento simbólico, pois existem horrores da ordem do trauma que não têm como ser ditos, tais como as vivências de castração, do não-ser, do ser dividido. Vivências de um real inexorável, que não podem ser evitadas ou antecipadas, nas quais está implicado certamente o Outro e seu desejo indecifrável que exclui o sujeito. Quer seja por eventos psíquicos, quer seja por catástrofes naturais, são sempre "desgraças" que lhe caem na cabeça, como nos lembra Soler (2004). Além de excluído, continua a autora, cabe ao sujeito carregar as marcas deixadas por um trauma ao qual não pôde reagir, contra o qual não teve como lutar. Essa noção de exclusão do sujeito trazida por Soler indica que ele sai de cena quando é tomado de assalto por uma vivência de trauma. Aliás, a noção de exclusão é importante no desenvolvimento do presente artigo porque defendo a idéia desenvolvida por autores lacanianos de que, diferentemente do sintoma, o FPS encontra-se fora de subjetivação, ou seja, o sujeito não pode dele se apropriar, permanecendo alheio, ou melhor, não implicado em sua ocorrência.
Em Freud o conceito de trauma perpassa todo o seu percurso teórico. Nos primeiros textos, essa concepção é abordada como "um incremento da excitação no sistema nervoso" (FREUD, 1892/1975, p.197), mediante o qual não se tem ação ou palavras que permitam sua dissipação; ele é, a princípio, ligado ao factual, mas logo esse autor se dá conta de que, por trás das histórias contadas por seus pacientes, há muito de fantasia e passa a se interessar mais pelo texto que lhe é trazido do que pelo contexto real pretendido. Por outro lado, ele já havia descoberto que a temporalidade do trauma é a do só-depois ou do a posteriori na qual ocorre a validação de uma impressão que não pôde ser significada no momento de sua percepção, mas que foi fixada, retornando posteriormente em outros eventos.
Mais tarde, em 1920, ao utilizar em sua concepção do aparelho psíquico a metáfora extraída da Embriologia de "vesícula viva", cuja camada mais externa se transforma em um escudo protetor, Freud dirá que são traumáticos aqueles estímulos que atravessam esta camada, este escudo protetor, o que ocorreria devido à falta de preparo do eu e aos fatores de surpresa e susto. Posteriormente, em 1925, ele associará o trauma à idéia da angústia como um sinal e reação a este, que traria ao ego uma experiência de desamparo.
Contudo, é no texto de 1934 que é possível encontrar uma descrição mais pormenorizada do trabalho do trauma.
Os traumas são definidos como impressões primitivas da infância, da época em que a criança está começando a falar, cujo conteúdo se relaciona "a impressões de natureza sexual e agressiva..., e, indubitavelmente, também a danos precoces ao ego (mortificações narcísicas)" (FREUD, 1934/1975, p.93). Eles são "ou experiências sobre o próprio corpo do indivíduo, ou percepções sensórias, principalmente de algo visto e ouvido" (idem, p.93), que promovem "alterações do ego, comparáveis a cicatrizes" (idem, p.96).
Destaco, aqui, o fato de Freud articular o trauma com a época em que a criança está começando a falar, pois, como a linguagem ainda não fez sua entrada, não ficam lembranças no inconsciente, mas traços. Também gostaria de chamar a atenção para a descrição do trauma como "experiências no corpo do indivíduo" — corpo que tomará nota, que registrará o que aconteceu; corpo que ficará marcado, mas, como na referência ao "Bloco Mágico" (1925[1924]), nada será percebido na superfície, esses traços ficarão registrados numa camada mais profunda.
Freud, no "Esboço de Psicanálise" (1940[1938])), ainda conclui a respeito da universalidade do trauma e sobre as repressões que tais experiências originam. A teoria lacaniana reafirma essa universalidade, mas, de maneira diferente: traumática é a própria entrada na linguagem que ocasionará a ordenação de gozo, a regulamentação do gozo remanescente e a impossibilidade de acesso à Coisa. Dessa forma, todo ser falante é traumatizado, isso é fato de estrutura.
No Seminário 11, o trauma é conceituado por Lacan como aquilo que há de inassimilável no real da realidade sexual.
Em minha opinião, esse inassimilável é correlativo ao "umbigo do sonho" descrito por Freud no capítulo VII da "Interpretação dos sonhos" (1900): "trecho que tem que ser deixado na obscuridade" [...] "emaranhado de pensamentos oníricos que não se deixa desenredar" [...] "ponto onde ele mergulha no desconhecido". (FREUD, edição eletrônica). Mas, por outro lado, esse inassimilável pode produzir efeitos e afetos, plenos de angústia, que desorientam o sujeito, arrancando-o da cena simbólica ao tirar-lhe as palavras da boca.
Resta ao sujeito criar, construir um saber possível que, ao mesmo tempo que bordeja o horror dessa vivência, dando alguma vazão ao afeto aprisionado, aponta para ela.
A fantasia, tida por Lacan como "janela para o real" por estar entre o real e o simbólico, é uma possibilidade de pôr fim à vivência de ‘não-ser’, de ‘não-ter’ desejo, trazida pelo trauma. Mas existem outras possibilidades menos saudáveis e o adoecer está entre elas.
Aquilo do traumatismo que não é assimilado pelo psiquismo deixa traços fixados (Fixierung) que mais tarde, por associação, são assimilados a outras experiências, encontros com o real que são ressignificados enquanto traumaa posteriori. É a vivificação do velho se dando por meio da repetição significante, e isso ocorre de maneiras diferentes com cada sujeito, em momentos diferentes de sua vida, daí a contingência de sua ocorrência. Mas como traços eles têm também um ponto de não-assimilação, de não-significação, pontos enigmáticos que afetam o indivíduo podendo levá-lo ao padecimento e à doença.
É dessa forma que entendo tanto a relação do trauma com a lesão orgânica causada pelo FPS quanto as formulações, citadas antes, de Valas (1990) sobre as significações confusas do discurso do Outro que à força de tanto se repetirem causam trauma, e de Miller (1999) sobre o efeito traumático de acontecimentos não traduzidos pelo simbólico que engendram a lesão. Essa lesão é provocada, induzida, por um significante (indução significante) que vem do Outro, por algo obscuro no discurso do Outro que é traumático por não ser assimilado. A lesão é, pois, uma construção não simbólica escrita no corpo, resposta do sujeito emudecido ao trauma.
Considero que essas inscrições do trauma que têm como um possível efeito o FPS, são anteriores ao registro inconsciente, como se, também aqui, fosse possível se falar de um "umbigo" da mesma forma como Freud o fez com relação ao sonho — de um ponto duro inassimilável, até mesmo pela ausência de um representante psíquico para ele e pela exclusão do sujeito do inconsciente implícita nessas inscrições.
Algo que traz vivências da ordem do necessário, por trazerem indícios de invasão de real; experiências cujas dimensões ultrapassam os limites do simbólico, apagando o sujeito, ou, numa linguagem mais freudiana, trazendo o desamparo e a angústia mortífera que tocam o corpo, ponto último de ancoragem antes da dissolução psíquica. Vivências nas quais faltam palavras e, algumas vezes, sobram passagens ao ato, ou, como no caso do FPS, passagens ao corpo.
 UMA CORRELAÇÃO POSSÍVEL ENTRE FPS, TRAUMA E LETRA
Para Lacan, a letra é o significante descolado de qualquer significado, litoral entre saber e gozo (Seminário 20). Ao que parece, algo é inscrito no psiquismo do ser falante, pela linguagem do Outro, num momento tão primitivo que se apaga; algo que não tem representação psíquica, como nos diria Freud, mas que risca, ficando ilegível, mas ainda assim inscrito em sulco, marcando e produzindo efeitos; inscrição que, de certa forma, traça uma borda, circunscrevendo o irrepresentável. Ora, em minha opinião, isso se aproxima da teorização freudiana sobre as "cicatrizes do ego" deixadas por "impressões de traumas primitivos", e as correlaciono ao FPS como questões das quais ele é a resposta. O FPS pode, dessa forma, ser considerado como o efeito traumático da letra no corpo, um tipo de escrita, ou melhor, de rasura, um ponto duro, um osso, sem explicação, um hieróglifo, um texto escrito pelo corpo e no corpo, de maneira ilegível, produzindo seus efeitos, entre eles o de condensação de gozo, de barra à pulsão; saída plausível perante a ameaça de ruptura do psiquismo trazida pela vivência do trauma. Uma resposta possível, contingencial por fatores genéticos e da vida dos sujeitos. Uma possível saída para o insuportável trazido pelo trauma.
Até agora, nesta breve teorização, pode-se dizer que estive operando no campo do significante, mas é sabido que o FPS envolve grandes quantidades de gozo, como foi apontado por Lacan em sua Conferência em Genebra. Miller (1999), partindo dos enunciados de Lacan, propõe a abordagem do FPS não apenas por meio da vertente do significante como também por meio da vertente do objeto a e do gozo; vertentes que não se excluem mas que se completam.

O FPS NA VERTENTE SIGNIFICANTE E NA VERTENTE DO GOZO
Para sustentar a idéia desenvolvida por alguns autores lacanianos do FPS como uma escrita sem sentido, como venho fazendo até então, faz-se necessário trabalhar dentro da vertente do significante o conceito de holófrase, uma vez que é ela a responsável pela falha de significação nesses fenômenos.
Holófrase, esse termo obscuro, em Lingüística, refere-se a um enunciado que condensa uma sentença que carrega um sentido ou uma intenção do emissor. Em Psicanálise, o termo é introduzido por Lacan (Seminário 11) para se referir à condensação do primeiro par da cadeia de significantes (S1 – S2) que passa a formar um gel, uma massa. Sabemos que é o espaço entre os significantes que possibilita o surgimento do sujeito e do objeto a, causa de desejo; havendo holófrase, a representação do sujeito por um significante ao significante seguinte não ocorre e as operações de alienação e separação não se realizam. De acordo com Lacan, tais operações são responsáveis pela realização do sujeito no lugar do Outro; elas se repetem ao longo da vida dos indivíduos, em suas relações, como numa pulsação, nas operações de interseção e separação de dois campos — do sujeito e do Outro.
Inseparáveis, a alienação e a separação ocorrem quase que instantaneamente, e através delas se faz possível a instauração do sujeito do inconsciente, ou sujeito do desejo.
Este cai do espaço entre os dois primeiros significantes da cadeia, dividido e desejante, mas para que isso ocorra é necessário que haja espaço entre S1 e S2, é necessário que não haja holófrase, pois, caso contrário, ele não cai ficando colado ao significante holofrásico. Na presença de holófrase ocorre a suspensão da função significante como tal (ausência da dimensão metafórica), com grande prejuízo para o registro simbólico.
Stevens (1987) chama a atenção para o fato de a holófrase ser algo "informulável para o sujeito" que deixa não interrogável o desejo do Outro (p.71), Outro que se apresenta como não barrado, não desejante. A impossibilidade de capturar o desejo do Outro implica a impossibilidade de surgir como um ser desejante; assim o sujeito não se afaniza, não se separa, ficando alienado nesse Outro não barrado. Isso remete à ausência da Metáfora Paterna e do Nome-do-Pai, operadores teóricos que Lacan introduz para abordar esse tempo do Édipo, no qual o Pai, ou alguém em sua função, barra a mãe e o filho.
Lacan, ao falar da holófrase, coloca assim o FPS em série com a psicose e com a debilidade. Mas é necessário marcar que, no caso do primeiro, não há foraclusão do significante fálico do discurso, como ocorre na psicose, uma vez que o FPS pode estar presente em outras estruturas nas quais outros mecanismos estejam operando, tais como o recalcamento e a denegação.
 Trata-se de um ponto de petrificação na cadeia significante, de uma Fixierung local que, à semelhança do sintoma, pode ser reativada posteriormente por um significante, como tenho dito. Para Guir (1997), o que ocorre no FPS é que a "metáfora paterna funciona em certos sítios do discurso e não em outros" (p.48), posicionamento este que se assemelha ao de Nasio (1993) que vai se referir nesses casos à "foraclusão como mecanismo local" (p.60).
Lacan, em sua Conferência em Genebra (1975/1998b), refere-se à psicossomática como algo da ordem do escrito, do hieróglifo, o qual, em muitos casos, não sabemos ler, o que pode ser compreendido como um escrito para não ler (pas-à-lire). Trata-se de um registro que não se dirige a ninguém, apenas uma notação, num determinado ponto do discurso ou, como acho mais interessante dizer, uma mostração.
Seguindo estas e outras idéias lacanianas a respeito da psicossomática, principalmente nessa Conferência e no Seminário 11, o FPS é comparado, por diversos autores, ao traço unário, signatura, nome próprio, hieróglifo, cartucho. A referência ao traço unário se justifica, uma vez que o FPS aponta para aquilo que tem de ranhura, marca do Outro no ser de sujeito na qual as lesões seriam uma forma de apresentação desse Outro.
A referência a signatura rerum (assinatura que traz a essência de todas as coisas) é feita por Lacan em 1975, numa clara alusão ao FPS como um enigma do real comparável ao hieróglifo ou cartucho (moldura na escrita hieroglífica que continha o nome de um soberano) — o corpo funcionaria como a moldura (cartucho) dessa forma de nome próprio, de nome do sujeito, que é o FPS. Para Laurent (1990), no FPS o nome próprio é feito com o gozo, nome composto com um ciframento particular de gozo.
Acredito que é importante ressaltar aqui esta comparação com o hieróglifo, uma vez que ele é uma escrita que, por muito tempo, permaneceu para os estudiosos como enigma impossível de ser compreendido pois não havia referenciais para decifrá-la. Isso, até a descoberta da pedra de Roseta, onde estava gravado um texto escrito em duas línguas conhecidas e em hieróglifo. Por meio do estudo comparativo entre as línguas foi possível a Champollion efetuar sua decifração. Ou seja, como o hieróglifo, o FPS se dá a ler numa escritura desconhecida do simbólico, numa escrita do real, daí a dificuldade da decifração habitual que se faz com o auxílio de significantes. Escrita que, para Lacan, se faz em números, que cifram o gozo, numa contagem absoluta que marca suas irrupções no corpo do sujeito em surtos inesperados e sucessivos, como numa pulsação de morte. O sujeito, sem compreender o desejo do Outro que lhe é enigmático, se submete a um imperativo de seu gozo, gozo que faz retorno naquilo que deveria ser o deserto do corpo. Esse autor nos adverte, como veremos no final deste texto, que é pela via do gozo que é preciso abordá-lo.
Penso que ocorre um transbordamento pulsional nas vivências traumáticas que rompem o semblante significante e até a própria fantasia, pois como não têm registro e nem memória, não têm marcação significante, o excesso não tem como ser amarrado, flutua como energia livre, como pura angústia. O FPS seria uma forma de laço, de amarração dessa energia. Mediante a ruptura do semblante pelo efeito de trauma, ele seria uma possibilidade de enlaçamento desse gozo real no corpo, texto escrito no corpo, pelo corpo, de maneira ilegível, escrita de real, que produz entre os seus efeitos o de condensação de gozo, de barra à pulsão; uma saída plausível perante a ameaça de ruptura do psiquismo. Saída possível à desorganização que esta invasão traz ao ser de sujeito, pois, ao promover uma condensação de gozo, o FPS impede que este se alastre no organismo, como ocorre na psicose, por funcionar como um tipo de laço, de amarração com a realidade.
No FPS, esse gozo se mostra por intermédio das lesões, da carne marcada — uma "libra de carne" para pagar pela falha significante. Mediante um encontro traumático, contingente, com o real, ocorre um retorno de gozo no corpo que é circunscrito pelas lesões que provocam, assim, o "enlouquecimento" do organismo. Com isso, acredito que o FPS promova o enlaçamento com a realidade, permitindo uma nomeação, ou melhor, um apelido para o sujeito por meio da doença (já que tal nomeação não se faz por meio da lei), mediante essa vivência impossível do não-ser, do "estar sem chão", trazida pelo trauma. Isso pode ser percebido em caso de psicose, no qual o indivíduo alterna surtos de delírio ou alucinações com lesões psicossomáticas, mas também pode ser percebido, em alguns casos de neurose, no arrefecimento dos sintomas quando ocorre o adoecimento do corpo, uma vez que este provoca um investimento narcísico no órgão. Isso não quer dizer que não ocorra horror e até mesmo pânico mediante as manifestações somáticas. Aqui, o arrebatamento pelo gozo se dá também pelo sofrimento, sofrimento mostrado no corpo.
Como já disse, no FPS o sujeito se submete a um imperativo de gozo sendo esta a sua especificidade. Específico em sua fixação fora do simbólico, freqüência de número (que não faz série) em lugar de repetição significante, ele apenas sinaliza algo da ordem de uma pulsação sem sentido no corpo. Gozo sem sentido e, acima de tudo, de muita angústia. Aqui, o corpo é injungido como objeto, objeto dejeto, impossível de ser causa devido à presença da holófrase; dejeto no corpo, proximidade de real que causa angústia. Angústia que muitas vezes extrapola os limites do corpo e contamina as relações do sujeito, o ambiente familiar e até mesmo a equipe médica. Angústia que, ao não ser escutada, pode ser negada — "você não tem nada" — ou que, por outro lado, pode ser pressentida e evitada com tratamentos placebos e peregrinações por consultórios médicos. Angústia que encontrou uma ancoragem no corpo e que necessita ser nomeada, falada e escutada em lugar de ser mostrada nas lesões. Como me disse uma vez um paciente: "Foi a Dra. Fulana quem me descobriu!", aliviado e agradecido por ter, por fim, encontrado alguém que lhe nomeasse o mal "físico"; por ter encontrado alguém que atestasse sua identificação pela doença, tal qual a mãe com uma criança pequena diante do espelho. Sua angústia continuou, mas agora já tinha um nome e ele, enfim escutado por alguém, pôde por fim aceitar a indicação de uma análise.

UMA PROPOSTA DE COMPREENSÃO DIFERENTE DO FPS
Este estudo me levou a algumas articulações que não encontrei em nenhuma referência bibliográfica. Trata-se de uma maneira pessoal de pensar o FPS, tema de difícil abordagem, relacionando-o aos efeitos do trauma e a uma possível função na estabilização do sistema psíquico. Vimos que os autores que teorizam a esse respeito fazem uso de analogias diversas para explicar o FPS: traço unário, hieróglifo, cartucho, nome próprio. Gostaria de acrescentar a analogia de um ‘remendo de tela’ da fantasia ou do delírio os quais podem romper após um encontro (que como vimos é sempre um reencontro) com o real. Escolhi o remendo e não a sutura pelo fato de o primeiro dar a idéia de algo postiço, que não encaixa completamente, que salta aos olhos e não tampona. Com isso, quero dizer que o real não pode ser de todo contido, a fantasia e o delírio não podem fazê-lo, e o FPS também não.
Tanto a fantasia quanto o delírio podem ser pensados como incidências do real no simbólico, pertencendo, porém, a estruturas diferentes. Podemos ponderar que eles têm em comum o fato de serem, ao mesmo tempo, tela de proteção do simbólico e janela para o real e serem responsáveis por certa homeostase no funcionamento psíquico. Sei que pode causar estranheza essa afirmação do delírio como tela de proteção do real, mas estou operando com a idéia freudiana de ele ser uma tentativa de cura para a psicose, uma reconstrução possível da realidade após o desmoronamento, o desenlaçamento do sujeito trazido por mais um surto de real. Mas se por um lado a fantasia se constrói sob a égide da significação fálica, o delírio, por outro lado, lhe escapa por não ter o falo como referente.
A fantasia é herdeira do recalque originário que apaga o S1, que por sua vez recobre a Coisa. Ela poderia ser articulada como o resquício da insistência da percepção que, ao tentar atravessar todos os neurônios protetores do sistema psíquico em formação, vai se transmutando, se depurando, ficando em restos... coisa, S1, traço unário, recalque, fantasia... dela só temos flashes através das formações do Inconsciente. Confeccionada pelo tecido de linguagem, sob a égide do significante fálico, a fantasia barra o gozo, o real, mas permite que vestígios dessa pura vida cheguem por meio de si e animem o corpo morto do ser falante. Daí a adequação da metáfora "janela para o real" que eu completaria com ‘janela para a vida’, pois com a entrada do simbólico, o corpo se torna corpo morto como nos lembra Miller (1999), e sua possibilidade de desfrutar da vida é por meio do gozo, restrito às zonas erógenas. Consolo do sujeito, a fantasia encobre e atenua os encontros com o real do trauma, ao fazer um enquadramento deste.
Nesses maus encontros, o gozo pode se desregular e romper a tela da fantasia, ameaçando o sujeito do inconsciente com o apagamento, com o afogamento num tsunami de efeitos prolongados, se nele não puder intervir o escoamento pela via do significante. Mas nesta vivência contingencial de "perda de chão", o que ocorre, entre outras coisas, é a impossibilidade de vazão da angústia pela linguagem, brecha aberta para o adoecimento do sujeito. E é aqui que entraria o FPS — como a possibilidade de ‘remendo’ dessa tela, para que ela não se esgarce, o que levaria à intrusão de um gozo completamente desregulado por estar fora da ordem fálica. De tecido diferente da fantasia, que é feita de significantes, o FPS se torna um remendo esdrúxulo, que salta aos olhos e denuncia a angústia que deveria encobrir; por intermédio das lesões ele condensa o gozo, se tornando uma forma possível de tratamento do real nesses sujeitos. Pode ser dito que ele funcionaria assim como um protetor da fantasia, como aquilo que impede sua ruptura ao conferir ao sujeito "desarvorado" pelo trauma a possibilidade de uma nova identidade, o que se relacionaria a um possível funcionamento do FPS como um dos nomes-do-pai que impede que o sujeito caia da cena.
Gostaria de utilizar um fragmento clínico para discutir essa forma particular de teorização. Marina, 20 anos, busca análise em decorrência de sentimentos de fracasso causados por forte inibição intelectual que a deixa paralisada, "sem saber o que fazer", sempre que é convocada a dar mostras de algum saber no trabalho, mas sobretudo na faculdade. Sua mãe, perfeccionista, é percebida como impossível de ser satisfeita em suas eternas exigências; ela sempre compara a filha ao irmão, tido como "brilhante", e a uma tia, pouco mais velha que Marina, "toda certinha".
As cobranças maternas são atualizadas pelas cobranças do patrão e de um professor "exigente"; frente a elas Marina, em pânico, é tomada por "brancos" e fica sem ter como responder.
Sem "saber o que fazer", ela se coça reativando um eczema crônico, presente "desde sempre" em sua vida, resistente a todo tratamento médico (o curioso é que a tia também tem uma afecção de pele do mesmo tipo).
Para Marina, a exigência materna repetida e atualizada é traumática; ela faz furo na fantasia consoladora de poder ter algum saber e "dar conta" de suas coisas lançando-a ao abismo do nada (nada poder dizer, nada entender, nada fazer) paralisando-a. O eczema tira-a desse abismo ao transferir a cena para o corpo — mediante a impossibilidade do recurso ao simbólico (ele falha, dá branco), o coçar é a única ação possível a essa moça, a angústia é dessa maneira corporificada nas lesões (tanto que na ocasião que buscou a análise ela havia interrompido o tratamento por não desejar "engordar").
Pode-se pensar que, neste caso, a escritura da fantasia é alterada pela ameaça de dissolução do sinal de punção. O FPS entraria no centro do sinal, encobrindo o desejo, mas impedindo que o traçado deste se desvanecesse. Ao fazê-lo, no entanto, ele colaria os dois, sujeito e objeto, num monólito passado ao corpo. Ele entraria tanto como possibilidade de escoamento de certo gozo (as feridas incomodam, enfeiam e trazem sofrimento) quanto como um remendo desta tela pela via da identificação com a tia (a mãe queria que ela se parecesse com a tia e ela o faz, pela via da lesão). Como o entremetimento do significante se faz impossível devido à ação da holófrase ("ter que fazer certo"), o FPS é uma possibilidade de circunscrição do gozo a "certos sítios" do corpo, impedindo a devastação pela angústia. Nesse sentido, ele é uma possibilidade de enlaçamento dos três registros, RSI, funcionando aqui como um dos nomes-do-pai. Ele sustentaria o sujeito que assim não delira, não desestrutura, apenas vive o sofrimento.
Algo correlato aconteceria com o delírio na psicose. Como já disse, no início desta seção, o delírio em si é uma tentativa de cura da psicose (FREUD, 1911), com ele o sujeito faz uma tentativa de reconstrução, de organização da realidade externa. Ou seja, perante o desenlace do sujeito da realidade, diante da invasão do real no aparelho psíquico, ele funcionaria como a tentativa de um novo laço, só que delirante. Como nos lembra Jorge (2004), ele é uma tentativa de preencher a falha deixada pela não entronização da fantasia, uma tentativa de reconstituição da matriz simbólica por ela representada. Ele não deixa de ser uma forma possível de tratamento do real na psicose, pois ao mesmo tempo em que barra o gozo ele permite que, através de suas formações delirantes, vestígios deste cheguem ao indivíduo. Dessa forma, acredito ser pertinente a postulação da mesma tese que foi feita para a relação do FPS com a fantasia, ou seja, o funcionamento deste como um remendo — mediante a possibilidade de desestabilização do delírio, que aqui está sendo tratado na metáfora de ruptura, devido a um recrudescimento de gozo, o FPS também funcionaria como um remendo lhe trazendo certa estabilização. Daí a ocorrência clínica já citada de sujeitos psicóticos alternarem surtos delirantes com ausência de lesões, e surtos psicossomáticos com alguma lucidez e certo apaziguamento.
Portanto, penso o FPS como uma condensação de gozo, ato desesperado de um "assujeito" que adoece no corpo evitando assim uma catástrofe pior que seria o seu apagamento total.
Ato enlouquecido, no qual, sem percebê-lo, o indivíduo volta-se contra si mesmo, que seria antes uma passagem ao ato, ou melhor, uma passagem ao corpo. Com a analogia da passagem ao corpo, pretendo marcar a ausência de sujeito nessa forma de adoecimento, devido ao apagamento do sujeito do inconsciente, e a impossibilidade de se referir ao FPS como um ato voluntário, implícito nas expressões usuais: "Fulano fez um câncer". Portanto, não se trata de um fazer consciente, mas de um não-saber-o-que-fazer uma vez que, num sítio do discurso, mediante o acionamento de um significante traumático para o sujeito, este se apaga. Com ele apaga-se o que há de mais estruturado no psiquismo, a fantasia e o delírio — tratamentos simbólicos possíveis do real.
Utilizando a mesma metáfora de Freud para o aparelho psíquico, a da vesícula viva, é possível pensar que, mediante o trauma, ocorre uma ruptura e uma invasão de real que é contida, de certa forma, pelo FPS. A lesão seria, assim, sua parte mais externa, sua ‘crosta inorgânica’ que, ao mesmo tempo que aponta para o real por meio da condensação de gozo, impede que ele invada o psiquismo. Audaciosamente, estou propondo que o FPS seria um dos tratamentos dados ao real do trauma.
Vale a pena ressaltar que o estudo do FPS é um grande desafio devido à dificuldade de se ter uma teoria específica para este tema. Autores aqui citados e muitos outros vêm trabalhando na construção de algum saber que possa bordejar essa manifestação do real que se faz presente na clínica e que resiste à apreensão. Dessa forma, penso que tais trabalhos, da mesma forma que o presente artigo, não têm a pretensão de apresentar uma solução teórica para esse problema, seriam antes bordejos do mesmo.
Enigma para os profissionais que dele tratam, horror, desgraça ou consolo para os pacientes que o portam, é possível pensar que o FPS advém de uma conjuntura: o encontro do necessário — real do trauma representado pela indução significante (palavras venenosas) — com o contingente, representado por fatores genéticos, hábitos de vida, etc. Nesse caso, a contingência também seria evidente na forma como o real do trauma se faz presente para dado sujeito — ele ocorre para todos, é da ordem do necessário, mas a maneira como ocorre é contingente.
Quanto à cura, gostaria de lembrar Lacan, em sua Conferência em Genebra: "é pela revelação do gozo específico que há na sua fixação, que sempre é preciso abordar o psicossomático" (LACAN, 1975/1998b, p.14). Valas nos propõe que a saída desse ponto de fixação, de petrificação, é "deixar o sujeito dizer, deixar ir de maneira refletida o livre jogo de sua angústia, de modo que possa se produzir um distanciamento, uma flutuação [...]. Pouco a pouco, ela vai ganhar sentido para ele" (VALAS, 2004, p.124). Não se trata aqui de remissão pela utilização de um significante causal ou das racionalizações do sujeito numa tentativa de compreender sua doença, mas de o sujeito falar de suas lesões nos mesmos termos que fala de sua angústia. Por outro lado, advirto com esse mesmo autor que o FPS é sensível ao significante e o uso inadequado das palavras pode produzir estragos (aumento das lesões, fechamento do inconsciente, e até a morte). O FPS é enigmático em sua remissão, pois esta pode resultar tanto do êxito de uma simbolização bem feita, advinda do processo de subjetivação, quanto de uma "prótese imaginária", fortuita ou planejada.No caso relatado, o dito do Outro, "saber fazer certo", tinha estrutura holofrásica para Marina que, diante dele, apagava-se. Não havendo sujeito para um ato, só lhe restava se coçar... pois, na impossibilidade de ser como a mãe, ou de acordo com o desejo materno, ela tomava emprestado um traço de alguém que representava a mãe para ela (no caso a madrinha que também tinha eczema). Essa é uma forma de mimetismo freqüentemente evocada em caso de FPS e descrita por Guir (1997) como o funcionamento do sujeito como uma parte do corpo do outro. Isso se aproxima do conceito de identificação de Freud. Poder-se-ia pensar que, em caso de FPS, a identificação se faz no corpo?
Por outro lado o eczema, ao mesmo tempo que trazia sofrimento e aplacava a angústia, a denunciava por meio da repetição e da impossibilidade de parar. Apenas quando essa angústia entrou no cenário da análise, é que foi possível pinçar o sujeito, sujeito que tem se fortalecido e lutado para, paulatinamente, escapar das garras do Outro. Marina assim vem se impondo, conquistando pequenas vitórias, confrontando, discutindo. Faz seis meses que ela não se coça (tempo recorde). Mais senhora de si, ela já pode alçar vôos mais altos, mudou de emprego e está estudando uma proposta para uma temporada fora. A coceira pode voltar, mas já encontrará alguém com certo "saber fazer".
Compreender o adoecer é algo que fascina e desafia o ser humano, como foi dito no início deste artigo. Cedo se descobriu que ele pode se relacionar ao além do visível numa atribuição ao Outro, seja ele Deus, Alma, Inconsciente, Real; um sentido é buscado alhures, para além do organismo e da natureza, na contramão da Medicina. O FPS nos coloca um desafio: como lidar com o sem-sentido? Como Champollion, os estudiosos se debruçam sobre esse enigma, acionado por um significante, mas não passível de leitura pelo mesmo, pois o texto por ele escrito se encontra em outra língua, uma língua viva, coabitada pelo gozo e não pelo significante mortificador. Escrito ou cifrado em número, o FPS segue desafiando o saber, esse S2 humilhado, mas que, como o inconsciente, não desiste, insiste. A nós, que por ele nos interessamos, cabe bordejar esse furo em nosso saber, auxiliados por nossa escuta na clínica desses pacientes e pelo difícil cotejamento teórico deste tema.
                  Maria Carolina Bellico Fonseca
Psicanalista

Fonte consulta: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1516-14982007000200006&script=sci_arttext

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