sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Por que a Psicanálise ?


Por que a Psicanálise?

 
“A discrição é incompatível com uma boa exposição sobre a psicanálise. 

 
É preciso ser sem escrúpulos, expor-se, arriscar-se, trair-se, comportar-se como o artista que compra e queima os móveis para que o modelo não sinta frio. 

 
Sem algumas dessas ações criminosas, não se pode fazer nada direito”.  (Carta de Freud a Oskar Pfister, 1910). 

 
Raskólnikov, personagem da grande obra do mestre Dostoyévski, Crime e Castigo (2001), vaga pelas ruas de São Petersburgo.

 
Num lapso de olhar ele vê fugidiamente os passantes das ruas. Cotidianamente ele nem se dá conta de que passa por ruas onde há passantes que vão para cá, para aqui, para acolá...

 
Mergulhado em seu “ensimesmamento”  tenso e inquieto, Raskólnikov conversa consigo mesmo – mas como assim?

 
Desejoso de sofrer, ele se entrega, folga em gozar de sua dor.
Sem escapatória, insistentemente ele se pergunta:

Serei eu o culpado?
Perdido em seus solilóquios, oscila, pensa, hesita, quase sem consciência; enquanto isso, os passantes passam...

 Sua única possibilidade é essa: conversar consigo mesmo.

Mas de que se trata?  
Freud nos legou uma linguagem que articula tais pensamentos desgarrados.

 

Pedaços de sentimentos que não encontram uma palavra para se dizer, nem para si próprio, se “Isso” houvesse, quanto mais para um outro qualquer.

 Falar consigo é quase como uma voz que fala dentro de mim, mas como assim?

Quem se dirige a mim?

Meu pensamento conversa comigo?

Quem escuta sou eu ou esse Outro que me habita criando monstruosidades e estranheza dentro de mim?

 Uma perturbação toma conta do meu pensamento, um Outro fala, me acusa, parece íntimo; familiar e estranho, me julga...

 Isso é tão antigo quanto a humanidade e foi tratado no decorrer dos tempos através de diversos recursos.

A  tragédia grega é um deles: a psicanálise também!

 Mas... o que o alvorecer do século XXI nos apresenta é uma sociedade que nega sua condição trágica, mergulha na festa da mídia, na “geléia geral brasileira” (Torquato, 2003, p. 63), em que a exclusão comanda o espetáculo.


O que vale então é estar incluído no mercado de capitais, ter cartões de crédito na bolsa com limites a se perderem de vista e mais ainda, a ilusão, é claro, de que em breve, em tempo de ainda estarmos vivos, a tecnologia aliada à ciência vai dar um jeito de acabar com a morte.

 
As células tronco estão aí a prometer...

Ao revés dessa corrente, naquilo que se chama sociedade depressiva neo-liberal, a melancolia como uma peste se espalha pelo cotidiano dos lares.
 

As moedas no bolso não pagam as moedas de carne que a depressão exige e denuncia; a impossibilidade de todos se incluírem nessa sociedade: levantar, ir para o trabalho, voltar para casa com “a boca cheia de dentes esperando a morte chegar...” (Seixas, s/d faixa 3).

 
O corpo do deprimido pesa.
 

Ele não consegue, nem como Raskólnikov, vagar pelas ruas.
Ele fica suspenso dentro de seu vazio, em que a angústia o contagia. Ele não consegue se levantar, sequer trabalhar.

 

Ele é a prova de que alguma coisa na rede social se esburaca: não funciona!

 Mas...não tem problema, as drogas nos salvarão, curarão nossa alma e poderemos seguir adiante, evitando os conflitos, acreditando numa pretensa harmonia e em que esse é o único método eficaz nestes tempos “pós pós”...

 

A indústria farmacêutica tem vários méritos.

Entre eles, o de diminuir o sofrimento psíquico.

 

Mas ela não tem recursos para revelar, articular aquilo que de dentro comanda o espetáculo da neurose.

 

O pensamento não se reduz a um neurônio, nem o desejo é feito de um líquor químico.

 
A repetição é o fermento principal para que a neurose cresça e apareça, nos fazendo escorregar por um tobogã no qual continuamente deslizamos por incessantes equívocos, jogando a força de vontade para um campo onde ela, anêmica, não tem potência para lidar com um fracasso que não sabemos de onde vem, com um mal estar que nos consome.

 
Escorregamos nas horas mais inadequadas, escolhendo, em vez de atalhos, vias enviesadas. Mas ora, ora...
Existem vários bálsamos que a realidade nos oferece: distrair-se, fazer aquela viagem - sabe qual? - sair do stress, fazer caminhadas e tantas outras coisas...

 Nada disso serve para aquele que está tomado pela melancolia.

 A paralisia o toma, no sentido literal do termo, mal consegue se pôr de pé, por exemplo...

E “Isso” num tempo “pós pós”, em que os recursos se ampliaram; em que a tecnologia caminhou no sentido de facilitar nossa vida, suprir nossos desejos; afinal, a realidade virtual existe e pode nos oferecer um mundo sensacional, ao gosto de cada um.

 
Mas então por que a psicopatologia do cotidiano revela um índice crescente de depressão?

Deixando essa pergunta no ar, sigo em frente, posto que é preciso falar mais disso que é o psíquico e dos recursos que a psicanálise vem criando desde o séc. XIX.

 A Psicanálise restaura o princípio de que o homem pode se liberar por sua fala: não pode se curar, porque a condição humana é sem cura, mas pode, inaugurando uma estética do duplo, saber que seu sujeito padece da linguagem.

 
Outras forças advindas do campo do inconsciente o surpreendem a cada dia.

 
Atravessado por atos falhos, ele diz “resisto ao desejo”, em vez de dizer o que pensava querer dizer, “registro o desejo”.

 A Psicanálise vem construindo um saber que não tem estatuto de ciência, um saber que vai atrás de rastros quase imperceptíveis, tropeços, sonhos; material desprezado aos olhos de hoje e mais; ainda por cima, a Psicanálise não acompanha a hiper velocidade atual.
 

Ela tem o tempo de uma escavação, o tempo em que um arqueólogo precisa para achar os primeiros traços rupestres daquele sujeito, como lá em São Raimundo Nonato, no Piauí.

 Voltando ao início, o sujeito pode continuar a falar consigo mesmo, só que em voz alta e na presença de um analista que flutuantemente o escuta.
 
Só existe uma regra: falar tudo que pensa, sem deixar escapar aqueles flashes que atravessam o pensamento, uma espécie de cometa que presentifica o inconsciente e que tem sua própria lógica, um nonsense que num só depois alcança um sentido.

 

Parece ridículo em tempos de provas tão contundentes e consistentes, conforme a ciência oferece através de suas máquinas - tomografias, ressonâncias magnéticas e outras coisas mais -, que a regra de tudo falar tenha alguma consistência.

 Entretanto... as mazelas da alma, infelizmente, não se revelam por essas imagens.

 O analisando é convidado a falar o mais livre possível.

 Permissão para que o seu lado sombrio, ou canalha, se manifeste.

A moral não nos interessa, nosso lume é a ética do desejo que não se preocupa com os bens.

O analisando é convidado a não reter nenhum pensamento, mesmo que ele seja desagradável – “eu vi a cara da morte e ela estava viva” (Cazuza, 2001, p.169), mesmo que o julgue sem sentido, mesmo que ele o considere desimportante. A regra é: pensou, falou.

 
Da centelha que atravessa o seu pensamento, o sujeito pode construir um Outro sentido.

 
Ele, que sempre pensou que papai e mamãe não o amavam, portanto teria sido melhor nascer de um ovo, começa a se dar conta da sua conta, da sua contribuição na inflação desmesurada que a sua neurose lhe cobra.

 Diante disso, que aparentemente parece tão pouco, sua vida pode tomar um outro rumo: o menininho já crescido pode ver por exemplo que queria que os seus irmãos não viessem ao mundo para ele continuar a ser sua majestade, o bebê.

 Desejos fratricidas só para ele reinar sozinho no coração de mamãe nos dando a certeza de que a idade adulta não passa de um projeto inacabado, ao qual tentamos nos agarrar.

 
Nesse novo enquadre, ele não passa de um menininho renitente que bate o pé diante das perdas e exigências que a vida apresenta. Ou melhor, alguma coisa que estava recalcada, guardada numa gaveta antiga e empoeirada surgiu aos seus olhos.

 Mas... para que esse novo enquadre promova efeitos de deslocamento simbólico, é preciso que ele tenha valor de ato, ou seja, que o sujeito apareça, onde o eu adormece.

 Então, nessa nova cena uma Outra pessoa que ele desconhecia aparece.

 Mas quem?

 Seu sujeito, é claro, aquele que o neoliberalismo juntamente com a moda atual quer ver desaparecer, porque o sujeito é amalgamado pela particularidade e esta pode não estar nos enquadres das exigências atuais.

 À Psicanálise não correspondem as adaptações do mercado, esse ser invisível que comanda o espetáculo.

 Pelo contrário, ela está mais afeita ao que nunca se viu, ao que não se sabe, material recalcado que retorna apresentando o sujeito do desejo que não necessariamente passa a ver o pior de si; aquela moça feia que sempre se viu sem atrativos pode ver através da estética do duplo – do seu sujeito dividido

 
– Uma Outra mulher que “passa com graça, fazendo pirraça, fingindo inocente, tirando o sossego da gente”...(Barroso, 1994, faixa 02).

 

Elisabeth Bittencourt é Psicanalista

 


 

Bibliografia:

Cazuza. Preciso dizer que te amo. Texto e edição: Regina Echeverria. São Paulo: Globo, 2001.

Dostoiévski, F. Crime e Castigo. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2001.

Neto, Torquato. TORQUAtália (DO LADO de dentro). Rio de Janeiro: Rocco, 2003

Seixas, Raul. “Ouro de Tolo”. Minha história. Remasterizado. São Paulo: Polygram, s/d.

Barroso, Ary. “Mulata assanhada”. Elis Regina no fino da bossa. São Paulo: Vela, 1994.
 
 
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