Por que a Psicanálise?
“A discrição é incompatível com uma boa
exposição sobre a psicanálise.
É
preciso ser sem escrúpulos, expor-se, arriscar-se, trair-se, comportar-se como
o artista que compra e queima os móveis para que o modelo não sinta frio.
Sem
algumas dessas ações criminosas, não se pode fazer nada direito”. (Carta
de Freud a Oskar Pfister, 1910).
Raskólnikov, personagem da grande obra
do mestre Dostoyévski, Crime e Castigo (2001), vaga pelas ruas de
São Petersburgo.
Num
lapso de olhar ele vê fugidiamente os passantes das ruas. Cotidianamente ele
nem se dá conta de que passa por ruas onde
há passantes que vão para cá, para aqui, para acolá...
Mergulhado
em seu “ensimesmamento” tenso e
inquieto, Raskólnikov conversa consigo
mesmo – mas como assim?
Desejoso
de sofrer, ele se entrega, folga em gozar de sua dor.
Sem
escapatória, insistentemente ele se pergunta:
Serei
eu o culpado?
Perdido
em seus solilóquios, oscila, pensa, hesita, quase sem consciência; enquanto
isso, os passantes passam...
Sua
única possibilidade é essa: conversar consigo mesmo.
Mas
de que se trata?
Freud nos legou uma linguagem que
articula tais pensamentos desgarrados.
Pedaços
de sentimentos que não encontram uma palavra para se dizer, nem para si próprio,
se “Isso” houvesse, quanto mais para um outro qualquer.
Falar
consigo é quase como uma voz que fala dentro de mim, mas como assim?
Quem se dirige a mim?
Meu
pensamento conversa comigo?
Quem escuta sou eu ou esse Outro que me
habita criando monstruosidades e estranheza dentro de mim?
Uma
perturbação toma conta do meu pensamento, um Outro fala, me acusa, parece
íntimo; familiar e estranho, me julga...
Isso
é tão antigo quanto a humanidade e foi tratado no decorrer dos tempos através
de diversos recursos.
A
tragédia grega é um deles: a psicanálise também!
Mas...
o que o alvorecer do século XXI nos apresenta é uma sociedade que nega sua
condição trágica, mergulha na festa da mídia, na “geléia geral brasileira”
(Torquato, 2003, p. 63), em que a exclusão comanda o espetáculo.
O
que vale então é estar incluído no mercado de capitais, ter cartões de crédito
na bolsa com limites a se perderem de vista e mais ainda, a ilusão, é claro, de
que em breve, em tempo de ainda estarmos vivos, a tecnologia aliada à ciência vai dar um jeito de acabar com a morte.
As
células tronco estão aí a prometer...
Ao revés dessa corrente, naquilo que se
chama sociedade depressiva neo-liberal, a melancolia como uma peste se espalha pelo cotidiano dos lares.
As moedas no bolso não pagam as moedas
de carne que a depressão exige e denuncia; a impossibilidade de todos se incluírem nessa sociedade: levantar, ir
para o trabalho, voltar para casa com “a
boca cheia de dentes esperando a morte chegar...” (Seixas, s/d faixa 3).
O corpo do deprimido pesa.
Ele
não consegue, nem como Raskólnikov, vagar pelas ruas.
Ele
fica suspenso dentro de seu vazio, em que a angústia o contagia. Ele não
consegue se levantar, sequer trabalhar.
Ele é a prova de que alguma coisa na
rede social se esburaca: não funciona!
Mas...não
tem problema, as drogas nos salvarão, curarão nossa alma e poderemos seguir
adiante, evitando os conflitos, acreditando numa pretensa harmonia e em que
esse é o único método eficaz nestes tempos “pós pós”...
A
indústria farmacêutica tem vários méritos.
Entre
eles, o de diminuir o sofrimento psíquico.
Mas ela não tem recursos para revelar,
articular aquilo que de dentro comanda o espetáculo da neurose.
O
pensamento não se reduz a um neurônio, nem o desejo é feito de um líquor
químico.
A repetição é o fermento principal para
que a neurose cresça e apareça, nos
fazendo escorregar por um tobogã no qual continuamente deslizamos por
incessantes equívocos, jogando a força de vontade para um campo onde ela,
anêmica, não tem potência para lidar com
um fracasso que não sabemos de onde vem, com um mal estar que nos consome.
Escorregamos
nas horas mais inadequadas, escolhendo, em vez de atalhos, vias enviesadas. Mas
ora, ora...
Existem
vários bálsamos que a realidade nos oferece: distrair-se, fazer aquela viagem -
sabe qual? - sair do stress, fazer caminhadas e tantas outras coisas...
Nada disso serve para aquele que está
tomado pela melancolia.
A
paralisia o toma, no sentido literal do termo, mal consegue se pôr de pé, por
exemplo...
E
“Isso” num tempo “pós pós”, em que os recursos se ampliaram; em que a tecnologia caminhou no sentido de facilitar
nossa vida, suprir nossos desejos; afinal, a realidade virtual existe e pode
nos oferecer um mundo sensacional, ao gosto de cada um.
Mas então por que a psicopatologia do
cotidiano revela um índice crescente de depressão?
Deixando
essa pergunta no ar, sigo em frente, posto que é preciso falar mais disso que é
o psíquico e dos recursos que a psicanálise vem criando desde o séc. XIX.
A Psicanálise restaura o princípio de
que o homem pode se liberar por sua fala: não pode se curar, porque a condição
humana é sem cura, mas pode,
inaugurando uma estética do duplo, saber que seu sujeito padece da linguagem.
Outras
forças advindas do campo do inconsciente o surpreendem a cada dia.
Atravessado por atos falhos, ele diz
“resisto ao desejo”, em vez de dizer o que pensava querer dizer, “registro o
desejo”.
A Psicanálise vem construindo um saber
que não tem estatuto de ciência, um saber que vai atrás de rastros quase
imperceptíveis, tropeços, sonhos; material desprezado aos olhos de hoje e mais; ainda por cima, a Psicanálise não acompanha a hiper velocidade atual.
Ela tem o tempo de uma escavação, o
tempo em que um arqueólogo precisa para achar os primeiros traços rupestres
daquele sujeito, como lá em São
Raimundo Nonato, no Piauí.
Voltando ao início, o sujeito pode
continuar a falar consigo mesmo, só
que em voz alta e na presença de um analista que flutuantemente o escuta.
Só existe uma regra: falar tudo que
pensa, sem deixar escapar aqueles flashes que atravessam o pensamento, uma espécie de cometa que presentifica o
inconsciente e que tem sua própria lógica, um nonsense que num só depois
alcança um sentido.
Parece ridículo em tempos de provas tão
contundentes e consistentes,
conforme a ciência oferece através de suas máquinas - tomografias, ressonâncias
magnéticas e outras coisas mais -, que a regra de tudo falar tenha alguma
consistência.
Entretanto... as mazelas da alma,
infelizmente, não se revelam por essas imagens.
O analisando é convidado a falar o mais
livre possível.
Permissão
para que o seu lado sombrio, ou canalha, se manifeste.
A moral não nos interessa, nosso lume é a ética do desejo que não se preocupa
com os bens.
O analisando é convidado a não reter
nenhum pensamento, mesmo que ele seja desagradável – “eu vi a cara da morte e
ela estava viva” (Cazuza, 2001,
p.169), mesmo que o julgue sem sentido, mesmo que ele o considere
desimportante. A regra é: pensou, falou.
Da centelha que atravessa o seu
pensamento, o sujeito pode construir um Outro sentido.
Ele, que sempre pensou que papai e
mamãe não o amavam, portanto teria
sido melhor nascer de um ovo, começa a se dar conta da sua conta, da sua contribuição
na inflação desmesurada que a sua neurose lhe cobra.
Diante
disso, que aparentemente parece tão pouco, sua vida pode tomar um outro rumo: o
menininho já crescido pode ver por
exemplo que queria que os seus irmãos não viessem ao mundo para ele continuar a
ser sua majestade, o bebê.
Desejos fratricidas só para ele reinar
sozinho no coração de mamãe nos
dando a certeza de que a idade adulta não passa de um projeto inacabado, ao
qual tentamos nos agarrar.
Nesse novo enquadre, ele não passa de um
menininho renitente que bate o pé diante das perdas e exigências que a vida
apresenta. Ou melhor, alguma coisa
que estava recalcada, guardada numa gaveta antiga e empoeirada surgiu aos seus
olhos.
Mas...
para que esse novo enquadre promova efeitos de deslocamento simbólico, é
preciso que ele tenha valor de ato, ou seja, que o sujeito apareça, onde o eu adormece.
Então,
nessa nova cena uma Outra pessoa que ele desconhecia aparece.
Mas quem?
Seu sujeito, é claro, aquele que o
neoliberalismo juntamente com a moda atual quer ver desaparecer, porque o sujeito é amalgamado pela particularidade e
esta pode não estar nos enquadres das exigências atuais.
À Psicanálise não correspondem as
adaptações do mercado, esse ser invisível que comanda o espetáculo.
Pelo
contrário, ela está mais afeita ao que nunca se viu, ao que não se sabe, material recalcado que retorna apresentando
o sujeito do desejo que não necessariamente passa a ver o pior de si;
aquela moça feia que sempre se viu sem atrativos pode ver através da estética
do duplo – do seu sujeito dividido
–
Uma Outra mulher que “passa com graça, fazendo pirraça, fingindo inocente,
tirando o sossego da gente”...(Barroso, 1994, faixa 02).
Elisabeth Bittencourt é Psicanalista
Bibliografia:
Cazuza. Preciso dizer que te amo.
Texto e edição: Regina Echeverria. São Paulo: Globo, 2001.
Dostoiévski, F. Crime e Castigo.
Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2001.
Neto, Torquato. TORQUAtália (DO LADO
de dentro). Rio de Janeiro: Rocco, 2003
Seixas, Raul. “Ouro de Tolo”. Minha
história. Remasterizado. São Paulo: Polygram, s/d.
Barroso, Ary. “Mulata assanhada”.
Elis Regina no fino da bossa. São Paulo: Vela, 1994.