quinta-feira, 23 de agosto de 2018

A CRISE DA PSICANÁLISE É RESISTÊNCIA AO REPENSAR


CRISE DA PSICANÁLISE.

Desde suas origens a psicanálise sofre ataques, seja pela descoberta de seu objeto, o inconsciente, pelo método de investigação, seja pelo campo de pesquisa e atuação, a clínica.
Enfim, mais de 100 anos se passaram desde a invenção da psicanálise e ainda há grandes embates teóricos a respeito de suas origens epistemológicas na tentativa de colocar em cheque seu estatuto científico e consequentemente sua validação enquanto procedimento terapêutico. Tal como em seus primórdios os ataques não advinham apenas de seus opositores e adversários, os maiores ataques vieram de dentro da psicanálise.
Ana Maria Rudge (2006) em seu texto, As teorias do sujeito contemporâneo e os destinos da psicanálise, argumenta sobre a necessidade entre os psicanalistas de situar sua ciência em nosso tempo histórico com o objetivo de aplacar as críticas que são cada vez mais ferrenhas. Em ataque ao olhar psicanalítico à singularidade há a acusação de ignorar as dimensões históricas e políticas do sujeito contemporâneo.
Rudge (2006) considera legítimos os esforços dos psicanalistas em buscar compreender a realidade cultural, contudo, considera “saídas um tanto apressadas e simplistas que evitam a via mais árdua da construção de teoria” (p.12) que chegam a ter efeito oposto à revitalização do campo psicanalítico e acabam se aliando ao ataque à psicanálise, considerado pela autora, uma “identificação com o agressor”.
Como exemplo, Rudge (2006) destaca as hipóteses de Charles Melman em O homem sem gravidade, considerando essa publicação um paradigma justificado pela repercussão entre os psicanalistas brasileiros e franceses. A ideia de Melman (2008) é a de que precisamos de uma “nova versão psicanalítica do sujeito contemporâneo”, e que uma “nova economia psíquica” estaria organizando o psiquismo, isto é, a economia psíquica passada, pautada na psicanálise clássica de Freud, organizada pela repressão, estaria superada, dando lugar à exibição do gozo. Por estes e outros ataques é que se anuncia uma “crise” da Psicanálise.
Entendemos que “crise” não seria o termo mais assertivo, uma vez que remete a um momento crítico e decisivo. A história do movimento psicanalítico nos revela que os ataques sofridos pela psicanálise atualmente são de natureza semelhante aos presentes em seu surgimento - e que a acompanham desde então. À vista disso, pensamos com Freud (1925/2006) e compreendemos este momento como típico, um movimento de resistência, próprio da psicanálise, uma vez que remonta a sua a própria história.
Freud em “As resistências à Psicanálise” (1925/2006) evidencia que as críticas a sua ciência não ficaram no plano intelectual das discussões epistemológicas, elas foram além, e vieram carregadas de exaltação dos humores e conclui que as explosões de indignação e escárnio sugerem outras resistências.
As resistências são atribuídas ao fator sexual da teoria psicanalítica, ou melhor, a força da sexualidade, de Eros, tanto na vida individual normal e patológica, como no âmbito das realizações culturais de mais alto valor para a sociedade. A principal crítica no plano individual foi a respeito dos sintomas das neuroses constituírem formas substitutivas de satisfação sexual, revelando o caráter patogênico que os padrões sociais excessivamente rígidos podem infligir ao indivíduo; a psicanálise foi acusada de pansexualismo e assim, uma ameaça a sociedade por incentivar a promiscuidade.
No plano social/cultural foi acusada de ferir, degradar os mais elevados valores culturais ao sustentar que a arte, a religião, e a ordem social, são também originadas de uma contribuição da sexualidade desviada de seu objeto imediato.
Enfim, desde sua origem as resistências mais fortes à psicanálise surgiram de fontes emocionais, de “algo” que a psicanálise anuncia e denuncia, e do qual não queremos saber. 
Partimos dos argumentos do próprio Freud e levantamos a hipótese de que ainda resistimos à descoberta psicanalítica da teoria dos instintos/pulsão, ainda resistimos à sexualidade infantil, resistimos ao caráter primordialmente sexual na origem de nossa mente. Resistência marcada seja pelo escárnio dos adversários da psicanálise, ou pela racionalização conceitual demasiada, muitas vezes dos próprios psicanalistas ou estudiosos da psicanálise, que transformam a força indomável das pulsões em abstrações e intelectualismo, como observou Freud.
Freud (1925/2006) admite, com pesar, que os psicanalistas não fogem a resistência que a psicanálise desperta. Entendemos também que da mesma maneira que se reivindica uma “psicanálise contemporânea”, uma psicanálise diferente da do pai, existe a dificuldade de renunciar o prestígio e proteção que a psicanálise representa e assumir-se e arriscar-se por conta própria. E assim, tal como o filho deseja, se desagrilhoar do pai, tido como conservador.
Sabe-se da importância que o tempo histórico e a cultura têm para o pensamento psicanalítico, enfim, “que o social é constitutivo da subjetividade humana”. (Honda, 2009, p.97). Não podemos deixar de evidenciar, entretanto, que a postura dos psicanalistas “resistentes à psicanálise” possam estar motivadas também pela ideologia da pós-modernidade, em que se rechaça com veemência as metanarrativas, as teorias explicativas e organizadoras, os clássicos, enfim, em linguagem psicanalítica, aos impulsos ambivalentes direcionado ao pai.
A análise de Freud a respeito das resistências à psicanálise nos leva a refletir sobre esta possível “crise da psicanálise”, e lança luz ao momento social e cultural que estamos vivenciando atualmente. Mesmo com o desenvolvimento tecnológico e científico acumulados, ainda os impulsos implacáveis e ambivalentes que habitam o humano não deixaram de impor sua força e com a mesma intensidade que nos atingiu nos primórdios da civilização.
Talvez a resistência à psicanálise não dure para sempre como Freud pensou, entretanto, sabemos que esta ciência ainda fere o narcisismo humano, ainda fere nosso desejo de onipotência, de completude. 
Sabemos também que ela continua a denunciar e criticar o funcionamento da sociedade, pois, o mal-estar se instala em qualquer tempo, em qualquer cultura.
Entendemos que por mais que mudanças sociais, econômicas, culturais tenham ocorrido neste intervalo de tempo, a civilização ainda se sustenta na repressão dos nossos instintos.

Por Isabelle Maurutto Schoffen
Psicóloga clínica, mestranda em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá, colaboradora e idealizadora da Roda de Psicanálise: teoria, clínica e cultura.

Referências

Freud, S. (2006). As resistências à Psicanálise. In Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 19, pp. 235-248). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1925) 

Honda, H. (2009). Subjetividade e Metapsicologia: a constituição conceitual da realidade psíquica. In: A. E. Tomanik, A. M. P. Caniato, & M. G. D. Facci (Orgs.) A Constituição do Sujeito e Historicidade. (pp, 63-104). Capinas: Alínea.

Melman, C. (2008). O homem sem gravidade – gozar a qualquer preço. (Sandra Regina Felgueiras, trad.). Rio de Janeiro: Companhia de Freud.

Rudge, A. M. (2006). As teorias do sujeito contemporâneo e o destino da psicanálise. In Ana Maria Rudge (org). Traumas. (pp. 11-21), São Paulo: Escuta.


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