quinta-feira, 18 de abril de 2019

A ESCUTA PSICANALÍTICA


A escuta psicanalítica

No alicerce de toda palavra, é a pulsão que insiste.
Seguindo de perto as repetições, pode-se rastrear as
pegadas das identificações.
  
A escuta adquire um lugar central na psicanálise por ser esta uma coisa de palavras, ditas ou silenciadas. 

Palavras que enganam, mas que abrem um acesso à significação. 

No entanto, a psicanálise, ao inaugurar o campo da escuta, produz uma verdadeira ruptura epistemológica concernente ao pensamento psiquiátrico do momento. Citando Saurí em seu texto compilatório sobre histeria: “A trama das crenças no naturalismo, contexto no qual a histeria começa a ser estudada cientificamente, privilegia o modo visual de conhecer.

 A metáfora da luz domina sua área expressiva e inquisitiva, enquanto a necessidade de ver e iluminar guia o esforço dos cientistas. O visto, e com maior razão o olhado, goza de uma prerrogativa relevante. Não é pois temerário afirmar que durante a vigência do naturalismo predomina epistemologicamente o campo visual e que a intenção explícita ou tácita de seus seguidores é conhecer olhando. Neste contexto, o privilegiado são as características visíveis daquilo a conhecer, pelo quê os traços ostensivos passam a primeiro plano”1.

 O espaço e a figura; a figura olhada sobre um espaço

 O império da objetividade positivista que recolhe e anota todos os dados que aparecem perante o olhar. E o que melhor que a histeria para ser olhada, já que esta se mostra com toda espetacularidade?
 Mas, próximo à década de noventa, chegando ao fim do século, no interior da Escola de Nacy, o relato começa a ocupar um lugar. A narrativa de um sujeito, após ser hipnotizado, começa a interessar. Com isso, a categoria da recordação se torna presente.

 Citando mais uma vez Saurí: “escutar refere imediatamente a fala e sua raiz latina vincula ‘o escutado’ ao ato de ouvir e de ‘montar guarda’; situação em que o escuta, cumprindo ofício de sentinela, vigia os sons provenientes de um campo diferente do seu próprio”2.
 “O escuta” escuta os ruídos que vêm de fora e também o silêncio que se incorpora ao campo da positividade. Se o silêncio não diz diretamente nada, algo nele se insinua, e quem escuta atentamente recebe as pegadas, as marcas que adquirem forma no momento em que germinam as palavras, ainda que estas, também enganadoras, portem em si o silenciado. É desde então que o exercício da suspeita se torna presente porque há um a mais do que o dito para ser escutado.

 A hipnose vai sendo substituída pela livre associação. A figura vai dando lugar à narrativa. Freud pede às histéricas que se deitem, fechem os olhos e, com isso, às vezes auxiliada pela pressão frontal, as recordações surgem.

 Em todas as direções o campo se estende. Isto não só porque não permanece  tal como o campo do olhar  reduzido ao dado, mas, ao contrário, é no mais lacunar do discurso que um fio de significação vai se tecendo. Mas também porque aparecerá a recordação e, com isso, a história solicita ser levada em conta.
  
O que escuta o analista?

 Não pensamos a linguagem como um instrumento de comunicação. Também o é. Alguém se propõe a comunicar algo e para isso se vale da linguagem. Porém, até aqui, a descoberta freudiana não está presente.

 Ao introduzir o conceito de inconsciente, Freud coloca a fala em outro lugar, alguém que fala e ao fazê-lo diz mais do que aquilo que se propunha. Neste falar, em certos momentos, a lógica consciente se rompe, se desvanece, e algo diferente se torna presente, manifestando uma outra lógica. A lógica do processo primário, presente no lapso, no sonho, no chiste, no esquecimento, na frase contraditória, no duplo sentido de uma frase que Freud manda Dora escutar quando lhe diz: “Memorize você bem suas próprias palavras. Talvez tenhamos que voltar a elas. Você falou, textualmente, que durante a noite algo pode acontecer que obrigue alguém a sair do quarto”3.

 Quando Freud estuda o sentido dos sonhos, a psicopatologia da vida cotidiana, inclui no espaço do sentido aquilo que até este momento era considerado um sem sentido, mostrando assim a positividade do esquecimento, da falta, do equívoco.

 Quando fala de Catarina, diz que a linguagem é demasiadamente pobre para dar expressão às suas sensações e aponta com isto a ampliação do campo do discurso como o caminho do analítico.
 Na instauração da situação analítica, ao propor a regra fundamental – a livre associação e o seu reverso, a atenção flutuante – se produz um desfraldar da palavra. 

No seio da associação livre vai-se produzindo um descolamento da imagem, do fato como fixo, e este vai-se incluindo em múltiplas imagens caleidoscópicas cujas combinações possíveis se multiplicam e onde o ritmo, a cadência, a intensidade maior de alguns fonemas, a excitação explícita no gaguejar de uma palavra, o sentido duvidoso de uma frase mal construída, tudo isso vai dando tonalidades diferentes a essas figuras que não passam desapercebidas à escuta sutil da atenção flutuante. 

Ao mesmo tempo, ao ser escutado pelo analista, o próprio sujeito que fala se escuta.

 Como vemos, a imagem retorna. Porém não é a imagem dada na figura do corpo histérico. É a imagem que surge da desconstrução do discurso e que adquire sua maior nitidez no momento da interpretação.

No alicerce de toda palavra, é a pulsão que insiste.

 Aquela que não fala, mas que é evocada pela palavra e que, levada pela compulsão à repetição, procura satisfazer-se. É seguindo de perto as repetições que acompanhamos as vicissitudes da pulsão e rastreamos as pegadas das identificações.

 Diria então que, do lugar do analista, se escuta tudo, para poder escutar alguma coisa. Coisa essa que é o inconsciente, que no seio da repetição insiste para ser escutado, que na trama dos movimentos imaginários se disfarça, se fantasia e, no entanto, vai tecendo o fantasma.
  
De que lugar o analista escuta?

Quem se dispõe a escutar se depara com o inesperado e é isto o que acontece quando, no seio do processo de “relatar”, o amor irrompe e tal irrupção surpreende. Surpreende a Breuer, que assustado cai fora da cena.

 Também a Freud, que decide enfrentar os demônios, além de surpreender a cada analista quando este se deixa surpreender e não faz da constante tradução (interpretação analógica) uma tentativa de enjaular a fera. 

O próprio Freud diz que é na forma surpreendente com a qual irrompe que está a força probatória do fenômeno da transferência.

O conceito de inconsciente não necessariamente quebra a idéia de exterioridade presente no olhar psiquiátrico. 

Se o inconsciente é entendido como algo que está no sujeito, a nível de depósito ou de panela de instintos, alguém de fora poderia observar isso que se encontra no sujeito, e a sessão analítica poderia converter-se em um espaço experimental onde alguém observa o que acontece com o outro e lhe comunica. 

É a noção de transferência que vem romper com esta possibilidade de objetivação.

 Sendo o campo da transferência algo que inclui ao mesmo tempo analisando e analista, tal montagem não permite mais objetividade.

 É evidente que, ainda que os dois estejam incluídos no mesmo campo, isso não implica em uma simetria ou em uma igualdade de funções.

 O analisando se dirige ao analista como sendo o único destinatário de sua palavra, o que não é mais que a tentativa que o analisando faz de articular seu desejo a uma presença concreta. De atribuir ao desejo um objeto para não reconhecer que o desejo, em sua impossibilidade de satisfazer-se, implica em uma falta, em uma ausência.

 O analista mantém a transferência, mas não se confunde com ela, e, mediante a não resposta, remete o sujeito aos fundamentos infantis do amor.

A abstinência do analista permite, no dizer de Freud, subsistir no analisando a necessidade e o desejo como forças que impulsionam o trabalho analítico e que, ao evitar querer apaziguar as exigências de tais forças com substitutos, remete o sujeito a suas origens inconscientes4.

 No entanto, isso só é possível através de uma renúncia narcísica do analista, que lhe permite: não ocupar o lugar de amo do desejo convertendo a análise em sugestão; não se oferecer como ideal a ser imitado convertendo a análise em pedagogia; ou acreditar em uma neutralidade absoluta, desconhecendo os obstáculos da escuta que, rapidamente, se encarrega de atribuir ao analisando como se fossem resistências suas convertendo a análise em uma grande batalha contra estas.

 Conrad Stein em “L’enfant imaginaire” diz: “As sessões do paciente têm mais possibilidades de converterem-se na sua psicanálise, se são para o seu analista, o lugar privilegiado de continuação da sua5.
 Quando Freud trata da transferência recíproca em “O futuro da terapia psicanalítica”, a coloca como um sintoma do analista, algo que é despertado pelo discurso do paciente e que toca os pontos cegos do analista, expressando-se neste como transferência recíproca.

 É devido a isto que se deduz a necessidade da análise pessoal do analista.

 Ainda que a análise pessoal seja condição primordial para tornar-se analista, tal fato não garante uma escuta. Cada novo processo de cura o confronta com a necessidade de percorrer as cadeias associativas aproximando-se de seu próprio desejo. 

Reencontra assim a possibilidade de ocupar o lugar daquele que põe em andamento o processo de desvelamento do desejo do analisando. 

Este considera o analista como aquele a quem dirige o sintoma (neurose de transferência), mas que, perante a não resposta, ressignifica, a cada momento, sua demanda, até a finalização da análise.
 Algum tempo atrás, um analisando, no seu fim de análise, refletia: “Há alguns anos, quando cheguei aqui, sabia que sofria, porém, só agora sei por que vim. 
Deve ser o único investimento em que só se sabe por que se veio quando se vai”.

Bela reflexão sobre a questão do tempo em análise, que é o tempo da ressignificação. 

Como acreditar que, na primeira frase de uma sessão, está dito tudo que será posteriormente explicitado? Entendo que o sentido não é algo já dado e que precisa ser descoberto, mas sim algo que se tece na rede de significantes e no tempo da ressignificação.

Penso que reconhecer que a possibilidade de escuta está no próprio desejo do analista, recuperado a cada momento pelo trânsito das associações que lhe permitem reconhecer seu desejo pessoal em jogo para poder a ele renunciar, levando-o a não ter a necessidade de querer assegurar seu lugar – nem pela rigidez do setting, nem pela rigidez do gesto.

 Freud dizia em uma carta a Biswanger: “O que se dá ao paciente não deve ser jamais afeto imediato, mas afeto conscientemente outorgado segundo as necessidades do momento... 
Dar pouco a alguém porque o amamos muito é uma injustiça contra o paciente e uma falta técnica”6.
  
Os limites da escuta
 Afirmei no começo que a abertura do campo da escuta traz à cena a história. 
De que história se trata? Óbvio que não a história factual, mas a história da constituição do fantasma. Fantasma este que vai surgindo na análise como efeito de deciframento a partir do sintoma. No entanto, não se pode dizer que a causa do sintoma esteja no passado. “A causa do sintoma está no presente, na inscrição presente do vivido e que na análise atua como transferência”7.

 Mas, a construção do fantasma não é senão uma teoria que, tal como um mito, tende a responder aos enigmas que o sujeito se coloca. É isto, pelo menos, que Freud mostra no caso do Pequeno Hans ou no artigo sobre as teorias sexuais infantis.

 Acontece que tudo isso se complica porque o analista também tem seu fantasma, sua teoria, sua história, assim como a história e o presente do movimento psicanalítico. 

Tudo isto pode oferecer possibilidades ao analista com relação à sua escuta mas também pode limitá-la.

 Seu fantasma se torna limite para a escuta nos pontos cegos. A teoria passa a ser limitadora da escuta quando entra na sessão para ser aplicada ou confirmada, obstaculizando com isso as possibilidades do analisando de construir a única teoria válida para si próprio, que é a teoria que constrói sobre sua história.
 A presença de vários corpos teóricos-clínicos, no movimento psicanalítico atual, também pode produzir uma ampliação no campo da escuta, não pelo ecletismo que é confusionante, mas através de um trabalho sério de situar as teorias no momento histórico em que surgem e as questões que se propõem responder (nenhum corpo teórico responde a todas as questões colocadas pela complexidade da clínica), bem como pelo trabalho de cruzamento de conceitos para esclarecer cada vez mais suas proximidades, suas diferenças, suas semelhanças e oposições.

Isso não é o que acontece quando as adesões dogmáticas convertem os discursos teóricos em espécie de senha com a qual cada analista garante seu reconhecimento pelo grupo, em troca de esvaziar sua palavra e alienar-se nos processos especulares de reconhecimento mútuo.

Há um limite insuperável para a análise: o limite da morte. 

Aqui cito Godino num artigo sobre a prática: “A morte é o momento em que cessa a eficácia do presente enquanto causal, onde tudo é puro passado, puro trauma e puro acontecimento factual, brutal, catastrófico e insolúvel.

 Para os vivos, pelo contrário, o fato se resolve em uma estrutura cuja história é a própria realidade dos vivos em sua inscrição presente”8.

Pergunto-me: como historicizar as teorias e os acontecimentos (pertinências institucionais) para que nos sirvam no processo constante de ressignificação da clínica sem deixar que nos convertamos em mortos-vivos dos estereótipos e dogmatismo?

 Silvia Leonor Alonso


Notas

1. Jorge Saurí (compilador), Las histerias, Ediciones Nueva Visión, p. 67.
2. Jorge Saurí, op. cit., p. 197
3. S. Freud, “Análisis fragmentário de una histeria”, in Obras completas, Biblioteca Nueva, Tomo I, p. 958.
4. S. Freud, “Observaciones sobre el amor de transferência”, in Obras completas, Biblioteca Nueva, Tomo II, 1914, p. 1692.
5. C. Stein, “L’enfant imaginaire”, Denoel, 1971, p. 364.
6. L. Biswanger, Discours, Parscours, de Freud, p. 317. Carta de Freud de 20 de fevereiro de 1913.
7. Antonio Godino Cabas, “Sobre la prática”, artigo publicado na Revista de Psicología Argentina nº`24, ano IX , p. 29.
8. Antonio Godino Cabas, op. cit., p. 29.



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