segunda-feira, 26 de março de 2012

O Amor é dar o que não se tem (a alguém que não o quer).

O Amor é dar o que não se tem (a alguém que não o quer). 

Esta frase aparece como um refrão no Seminário VIII, "A transferência" (1960-1961), tendo já figurado no texto "A Direção da Cura" (1958). Em ambos os contextos, é da transferência analítica que se trata, aquela que Freud não hesitou em chamar de amorosa.

Na definição do Dictionnaire de la Psychanalyse, de Roland Chemama, no verbete amour (références Larousse), o amor é um "sentimento de afeição de um ser por outro, às vezes profundo, violento mesmo, mas sobre o qual a análise mostra que pode estar marcado de ambivalência e, sobretudo, que não exclui o narcisismo".

O amor inspirou os poetas e os filósofos desde sempre, a própria Filosofia se intitulando como "amor da sabedoria".

A psicanálise veio dar um giro no conceito, acrescentando ao psicológico e imaginário as incidências inconscientes do ser de desejo e de falta.

Para demonstrar o quanto de antinômico pode perpassar os dois polos, Freud aponta o fato pouco raro de que muitos homens não conseguem desejar a mulher que amam, nem amar a mulher que desejam.

É que a mulher amada e respeitada, escolhida segundo um modelo da mãe, torna-se, por isto mesmo, proibida.

Mais que o amor, é a pulsão sexual que mobiliza as pessoas e energiza o mundo.

A energia psíquica das pulsões, a libido, foi sempre mantida por Freud como de natureza sexual, contra a insistência de Jung em afirmá-la como energia psíquica não especificada.

Para Freud, o genital da reprodução não cobre o sexual do prazer e do desejo, existente este desde a tenra infância, para espanto e escândalo dos leitores do começo do século XX.

Para qualquer criança, o primeiro objeto amoroso é a mãe.

O próprio Freud descobriu, em sua autoanálise, que, quando criança, teve sentimentos de amor para com sua mãe, e de ciúme em relação ao pai. Toda criança passou por isto, embora o tenha recalcado, o que vai acarretar mais ou menos dificuldades nas escolhas de objeto posteriores.

É que estas escolhas são mediadas por um modelo, o de um outro.

 É assim que se instaura o processo de estruturação do sujeito.

O infans, que não teve ainda acesso à linguagem, não tem a imagem unificada de seu próprio corpo, não tem noção do eu e do objeto, não tem sua identidade de verdadeiro sujeito.

O investimento pulsional é aí autoerótico. Tudo se passa no registro da necessidade. A estruturação do sujeito implica ultrapassar o registro da necessidade para o do desejo.

O grito e o choro, inicialmente, expressão de insatisfação e desconforto, tomam-se apelo, demanda de outra coisa.

A resposta do outro, sob a forma de olhar de reconhecimento, vai constituir a identidade do sujeito.

Este é, para Lacan, o narcisismo primário, investimento libidinal do sujeito em si mesmo, nesta imagem de si confirmada pelo outro.

A esta identificação primordial vão se suceder as identificações imaginárias, ainda exteriores, a ponto de Lacan dizer que "o eu é um outro". A mesma imagem com que a criança se identifica, também a aliena.

E quando o espelho é outra criança da mesma idade, o que ocorre é a eclosão da agressividade, cada qual se julgando "sua majestade onipotente".

Como não há lugar para dois onipotentes ao mesmo tempo e no mesmo trono, um deve eliminar o outro, sob legítima defesa. O ódio aí aparece como uma paixão que visa destruir o objeto.

E Lacan não perde a ocasião de evocar, em seus seminários, o exemplo autobiográfico descrito por Santo Agostinho, nas Confissões, do menino que, antes do domínio da fala, contempla, pálido e com o olhar envenenado, seu irmão de leite, mamando no seio da mãe. Contempla, de fato, sua própria imagem corporal, fornecida pelo irmão, onde o sujeito se percebe como excluído do objeto de seu desejo.

Apesar de a imagem ser fundadora, ele a odeia.

É esta ambivalência que Lacan vai denominar, no Seminário XX, "Encore", de hainamoration, ódio e enamoração, (amódio, amor e ódio, na tradução brasileira).

Mas, é através dos Diálogos de Platão, que qualquer consideração sobre o amor toma consistência.

Retomando o título deste capítulo, a frase é uma "invencionice" de Lacan, segundo ele mesmo.

O que está escrito n’O Banquete de Platão é : "é impossível a qualquer pessoa dar aquilo que não tem, nem ensinar aquilo que não sabe".

O Banquete foi citado também por Freud nos textos: Três ensaios sobre a teoria da sexualidade e Além do princípio de prazer.

 No prefácio à quarta edição dos Três ensaios, Freud assinala que a nova dimensão dada ao conceito de sexualidade, na psicanálise, corresponde ao conceito de "Eros" do divino Platão.

Lacan toma O Banquete como base para desenvolver o seminário sobre a transferência.

O Banquete se compõe de vários discursos sobre o amor, que Lacan nos orienta a ler como se fossem relatos de sessões de análise.

Numa versão que só se encontra em Platão, assim é descrito o mito do nascimento do Amor: Amor é filho dePoros (a Astúcia, a Riqueza) e de Penia (a Pobreza ou Miséria).

Por ocasião do nascimento de Afrodite (aquela que nasceu dos órgãos castrados de Zeus, lançados ao mar), os deuses deram um banquete comemorativo, ao qual compareceu Poros.

Durante a festa, Penia sentou-se do lado de fora, nas escadarias, para mendigar as sobras da mesa.

Não entrou, porque não tinha nenhum presente a oferecer. Acontece que Poros se embriagou, saiu para o jardim, e Penia se fez engravidar por ele, enquanto estava adormecido.

Nasceu Amor, de um masculino passivo, desejável, e um feminino ativo, desejante.

O que ocorre entre o amante e o amado?

O que é amante? É aquele que, sentindo que algo lhe falta, mesmo sem saber o que seja, supõe em outro, o amado, algo que o completaria.

O amado, por sua vez, sentindo-se escolhido, supõe que tem algo a dar, sem saber bem o quê.

Mas, como o amado é também um ser falante e faltante, algo também lhe falta, como ao amante. Assim, o que ambos têm a dar é um nada, um vazio. E aquilo que o amado supõe ter para dar, não é o que falta ao amante.

O amante não sabe o que lhe falta, o amado não sabe o que tem, um não-saber que é do inconsciente.

Quanto ao amor, nada mais discordante, como diz Lacan: "basta que se esteja nele, basta amar, para ser presa desta hiância, dessa discórdia".

O amor é um significante, uma metáfora, uma substituição: "É na medida em que a função do Érastès, do amante, na medida em que é ele o sujeito da fala, vem no lugar, substitui a função do Éroménos, o objeto amado, que se produz a significação do amor".

No Seminário XI, sobre "Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise", Lacan é mais enfático, dizendo que "amar é querer ser amado", formulação bem próxima do conceito de amor narcísico em Freud.

Sendo assim, no mesmo momento em que o amante constitui alguém como amado, transforma-o em seu amante, e vice-versa. Do lado do amante, está a posição ativa, que provoca automaticamente sua reversão em passividade. A metáfora do desejante aponta para a resposta à questão: "o que é desejado?

É o desejante no outro". Isto é tão profundo e forte que, se fosse convocado um exército feito de amados e amantes, segundo Lacan, "seria um exército invencível, na medida em que o amado, para o amante, tanto quanto o amante para o amado, são eminentemente suscetíveis de representar a mais alta autoridade moral, aquela diante da qual não se cede, aquela diante da qual não se pode ser desonrado.

Esta noção alcança, no seu ponto extremo, o amor como princípio do sacrifício último".

Mas, o paradoxo do amor ostenta seu lado fraco, um impasse e um problema, na medida em que "o sujeito não pode satisfazer a demanda do Outro senão rebaixando-o, fazendo deste Outro o objeto de seu desejo".

Mesmo assim, o amor é privilégio do ser falante. Os animais não amam porque não podem demandar a um outro que produza a metáfora do amor.

Por isto, se alguém responde à demanda de amor dando alguma coisa sem metaforizar, não está amando. É um engano, um logro. "Há, no rico, uma grande dificuldade de amar".

Porque ele se apressa em responder à demanda, dando o que tem. Para Lacan, "dar o que se tem, isso é a festa, não é o amor". O rico, ao dar, quer se livrar do pedinte.

Dar, para o rico, é o mesmo que recusar o amor.

A má reputação dos ricos os dificulta de entrar no reino dos céus. Ali só entram os santos, os que, não tendo nada para dar, sendo pobres, podem amar verdadeiramente, estando aí sua riqueza.

Qual era o encantamento que levava Alcebíades a declarar amor a Sócrates? Ele mesmo o diz n’O Banquete: "Começarei dizendo que Sócrates é semelhante a esses silenos que se encontram nas oficinas dos estatuários;... quando se abrem estas estátuas, vê-se que no interior se aloja um deus".

O que continham estas estátuas, ninguém sabe ao certo. Lacan sugere: ornamentos, enfeites, jóias, ex-votos, fetiches; eram sempre objetos preciosos e brilhantes, chamados de "Agalma", de onde Lacan extrai a letra "a" do "objeto a". São correlatos, na psicanálise, aos conceitos de objeto parcial, objeto do desejo, “objeto a”, falo.

Tê-lo ou sê-lo, é a dialética que gira em tomo do falo, este "objeto privilegiado no campo do Outro".

O homem não é sem tê-lo, e a mulher é sem tê-lo. "É na proporção de uma certa renúncia ao falo que o sujeito entra na posse da pluralidade dos objetos que caracterizam o mundo humano".

E o analista?

Este se coloca, inicialmente, na posição de amante, de demandante.

Já que decidiu ser analista, este desejo lhe indicou que algo faltava.

Faltava ser analista. Falta fundada no desejo de saber sobre o desejo do paciente, do amado.

O analista pede, então, que o paciente lhe dê ou fale algo que ele, analista, não sabe o que é.

O paciente, por sua vez, supondo que tem algo a dar, a dizer, o seu não saber sobre os sintomas, inverte a situação, passando a amante, agora na posição da atividade associativa. Esta gangorra do amante amado, mestre-‘objeto a’, vai se substituindo.

O paciente sabe que tem algo não-sabido, o analista sabe que seu saber é só suposto. Assim, cada um só tem a dar um nada. Isto é a transferência, dar o que não se tem o verdadeiro amor.

Diz Lacan: "Para que o analista possa ter aquilo que falta ao outro, é preciso que ele tenha a nesciência.

É preciso que ele esteja sob o modo de ter, que ele não seja, ele também, sem tê-lo, que não falte nada para que ele seja tão nesciente quanto seu sujeito".

Daí a importância de que o analista não compreenda e não confie na sua compreensão. É bom até duvidar dela. Ele não tem que procurar, mas convém achar, justo onde não compreende e não espera encontrar.

Pois, "é somente na medida em que, decerto, ele sabe o que é o desejo, mas não sabe o que esse sujeito, com quem embarcou na aventura analítica, deseja, que ele está em posição de ter em si, deste desejo, o objeto".

E se o analista sabe o que é o desejo, sabe-o pela própria experiência de se ter defrontado com o "objeto a", causa do desejo, em sua própria análise.

Foi um processo de depuração de um desejo mais forte, uma mutação na economia de seu próprio desejo, que o transformou em desejante, habilitado a ocupar o lugar de desejado, lugar de causa do desejo.

Estão dadas assim as condições para que aconteça o verdadeiro amor, no dizer de Lacan:

 "A cela analítica, mesmo macia, não é nada menos que um leito de amor".

Duas pessoas se encontram, com determinada freqüência, durante meses, durante anos, numa salinha trancada, onde passam horas a sós, falando do que há de mais íntimo, pessoal, secreto, sofrido, magoado, esperançoso, feliz, alegre, todas as fantasias à solta, nenhum risco de julgamento ou censura.

Sem falsas promessas, dizem-se coisas que a ninguém mais é dado ouvir, nem aos pais, irmãos, parentes, amigos, namorados, amantes, parceiros, colegas; coisas que, se não fossem ditas ali, nunca mais seriam proferidas pelo resto da vida, e isso, diante de alguém total e incondicionalmente disponível a escutar, sem limites. Então, isto não é o grande e verdadeiro amor?

Aquele que dá o que não tem?

Freud se interrogava se o amor de transferência era verdadeiro ou falso. Admitiu até que era verdadeiro, mas com a pessoa errada. O erro sobre a pessoa aconteceu também n’O Banquete.

Quando Alcebíades tomou a palavra para proferir seu discurso sobre o amor, dirigiu-se a Sócrates e, entre encômios ao amor, lhe fez os mais rasgados elogios. Sócrates, contudo, numa interpretação psicanalítica, respondeu lhe: "todas as tuas palavras tendiam unicamente a suscitar inimizade entre mim e Agatão; crês que devo amar-te a ti e a ninguém mais; e que Agatão só deve ser amado por ti, e por mais ninguém.

Nenhum de nós, porém, deixou de notar tua intenção".

Concluindo, uma citação da Direção da Cura:

"Se o amor é dar o que não se tem, é bem verdade que o sujeito pode esperar que se lho dê, já que o psicanalista não tem nada mais a lhe dar. Mas, mesmo este nada, ele não lho dá, e é melhor assim: é por isto que, este nada, paga se a ele, e generosamente, de preferência, para mostrar que, se não fosse assim, isto não seria caro".

Prof. Geraldino Alves Ferreira Netto

É Escritor, Psicólogo, Psicanalista Professor da PUC

 

BIBLIOGRAFIA

CHEMAMA, R. Dictionnaire de Psychanalyse. Références Larousse.

FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, E.S.B., vol. VII, Imago.

FREUD, S. Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor, E.S,B., vol. XI, Imago.

FREUD, S. Sobre o Narcisismo: uma introdução. E,S.B., vol. XIV, Imago.

FREUD, S. Além do Princípio de Prazer, E,S.B. vol. XVIII, Imago.

LACAN, J. Écrits, La direction de la cure. Ed. du Seuil. LACAN, J. Seminário VIII: A Transferência, Jorge Zahar Ed.

LACAN, J. Seminário XI: Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise, Zahar Ed. LACAN, J. Seminário XX: Mais, ainda, Zahar Ed.

PLATÃO, Diálogos, Edições de Outro e Ed. Tecnoprint.

 

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